O retorno de Márcia Ferro, a rainha da Boca do Lixo de SP
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O retorno de Márcia Ferro, a rainha da Boca do Lixo de SP



Em 1983, quanto tinha 21 anos de idade, ela encarou o convite que recebeu para participar de um filme pornográfico na Boca do Lixo de São Paulo como uma oportunidade de ser uma estrela do cinema . Em 2006, já com 44 anos, 10 deles afastados de produções cinematográficas e teatrais do gênero, ela recebeu uma proposta para voltar a estrelar um filme pornô. Desempregada e com uma filha de 7 anos para criar, Márcia Ferro dessa vez não pensou na fama. Mas sim em ter um ganha-pão.
Paulistana de Santana, na Zona Norte da Capital, Márcia Ferro foi uma das principais estrelas do cinema da Boca do Lixo, local do centro da cidade responsável pela produção de metade dos filmes brasileiros, de todos os gêneros cinematográficos, entre os anos 70 e 80 (ver texto abaixo). Guias de filmes registram que Márcia Ferro tem em seu currículo pelo menos 28 filmes em seis anos de cinema. A atriz diz que foram 38.
Márcia Ferro é a caçula de três irmãos. Sua família não enfrentava dificuldades financeiras, mas para ela era “desestruturada”. A atriz não gosta muito de entrar em detalhes sobre sua vida no ambiente familiar. Comenta apenas que a mãe era carinhosa com os filhos, ao contrário do pai. “Era um homem violento, que dominava a casa com mão ferro, pois era do regime militar (hoje é tenente reformado). Do jeito que tratava os outros na rua, tratava a gente dentro de casa”, recorda.
Com a morte da mãe, em 1981, Márcia Ferro não viu clima para continuar morando com o pai e decidiu sair de casa em busca de liberdade. Nesse mesmo ano, a futura atriz havia perdido a virgindade com um namorado quatro meses antes de completar 19 anos, o que gerou uma baita discussão com o pai. Afinal, Márcia Ferro sempre tinha estudado em colégios de freiras e costumava ouvir dizer que sexo somente era permitido depois do casamento. O desejo da família era que ela estudasse odontologia. "Mas, por meu pai, eu não cuidaria da boca de homens".
Dois anos depois de sair de casa, Márcia Ferro foi abordada por um produtor enquanto caminhava na Avenida Cásper Líbero, no Centro da cidade. Ele perguntou se ela não queria participar de um filme pornô. Márcia titubeou, mas decidiu deixar seu telefone com o produtor. Dias depois ela estava participando de “Gemidos e Sussurros”, dirigido pelo italiano Rafaelle Rossi (é dele o primeiro filme pornô brasileiro, chamado “Coisas Eróticas”, de 1981).
A primeira vez de Márcia Ferro em frente às câmeras não foi uma experiência maravilhosa. “Tive que fazer uma cena de lesbianismo e pra minha cabeça isso foi um choque”, conta. Sem nenhum trauma, a atriz continuou filmando, dessa vez atuando com homens. E resolveu que seguiria carreira no cinema pornô. “Fiz por dinheiro, mas fiz com muito amor e gostando como profissão”, afirma. Márcia Ferro ficou famosa também por participar de cenas de sexo com cavalos. Muitos desses filmes de zoofilia foram dirigidos pelo filipino Juan Bajon e fizeram sucesso no exterior.
Com o fim do cinema da Boca do Lixo, graças à concorrência desleal dos filmes estrangeiros feitos para o videocassete que começaram a chegar no Brasil no início dos anos 90, Márcia Ferro decidiu voltar-se ao teatro de sexo explícito. Ela e o ator pornô Osvaldo Cirilo compraram em sociedade o teatro Terra Nova, na Bela Vista, no Centro de São Paulo. O nome do local passou a ser Teatro Márcia Ferro, provavelmente por causa da força do nome da atriz, o que ajudou a atrair público para o local.
Em 1992, com a morte de Cirilo por Aids, Márcia Ferro decidiu largar tudo. Ela nega que o ator tenha sido seu marido, ao contrário do que afirmam até hoje imprensa e fãs. “Quando o Cirilo morreu pensei que estava ficando órfã mais uma vez. Para mim, ele era tudo o que eu não tinha mais em minha família, a pessoa que me ajudou a se levantar na vida. Uma pessoa que marcou muito minha vida, mas não foi meu marido. Resolvi vender o teatro pois não era a mesma coisa sem ele”.

"Distribuí currículos, mas não consegui emprego"

Ao abandonar a carreira de atriz e empresária de espetáculos teatrais, Márcia Ferro se casou e foi morar num sítio em Caucaia do Alto, na região de Cotia, na Grande São Paulo. A atriz recorda que trabalhou como monitora de uma creche naquela cidade. No final de 1998, Márcia Ferro deu à luz uma menina (a atriz tem um filho de 24 anos de um outro relacionamento, mas ela se limita a dizer apenas que o rapaz é advogado). Mais uma vez a atriz viu sua família se desestruturar.
Em maio de 1999, o extinto jornal Notícias Populares deu em manchete de primeira página: "Primeira-dama pornô passa fome em Cotia". Isso porque, de acordo com a reportagem, ela foi abandonada pelo marido, que também se recusava a assinar a autorização de venda da chácara para que ambos ficassem com sua parte do dinheiro. Hoje, a atriz nega que tenha passado fome e acredita que suas palavras tenham sido mal interpretadas.
"Não tem como (ter passado fome). Morava numa chácara, onde tinha terra para plantar e estava perto de agricultores e sitiantes. Não estava mais na atividade de cinema, mas estava trabalhando, era monitora numa creche", afirma Márcia. Depois de finalmente conseguir se separar do marido judicialmente, a atriz resolveu tentar vida nova na Capital paulista, onde voltou a morar há um ano e seis meses. "Vendi o sítio e comprei apartamento aqui para recomeçar a minha vida".
Mas a sorte não estava do lado de Márcia. Percorreu vários postos de trabalho em São Paulo, mas não conseguia emprego. "Distribui currículos (para as vagas) de monitora de creche e recepcionista de hotel. Eu fiz um curso de governança em hotelaria, mas nunca fui chamada para uma entrevista, um teste". Como se tudo estivesse perdido, sem mais nem menos Márcia viu a história de 1983 se repetindo ao reencontrar um amigo da Boca do Lixo no primeiro semestre deste ano.
Segundo Márcia, ela estava caminhando nas imediações da Rua Sete de Abril quando percebeu que alguém chamava por seu nome. Na terceira vez, Márcia olhou para trás e reconheceu o amigo. Entre uma conversa e outra, ele perguntou se Márcia não tinha vontade em voltar a trabalhar em filmes pornô. A "futura atriz pela segunda vez" novamente ficou na dúvida, mas pensou que dessa vez ela tinha uma criança para sustentar. E fechou contrato para filmar o DVD "Idade da Loba", lançado recentemente pelo selo Brasileirinhas.
A atriz ainda não sabe se voltará a participar de outro filme. Com parte do dinheiro do filme, ela comprou outro apartamento, que aluga para poder ter uma renda mensal. Márcia compara as circunstâncias dos dois convites que recebeu para trabalhar com filmes pornô. "Na primeira vez era uma oportunidade que estavam me dando para brilhar no cinema. Eu não ia perder meu bem, então abracei. Agora eu tinha uma filha para criar, sem ninguém querendo me dar emprego. Tem dedo de Deus nessa história".

Centro da Capital era "Hollywood brasileira"

São Paulo teve uma central de produções de cinema, que ficava na Rua do Triunfo, entre os bairros Santa Ifigênia e Luz, na região central de São Paulo. A polícia batizou essa área da cidade como Boca do Lixo nos anos 50 por causa da concentração de prostitutas e malandros nas redondezas. Décadas depois, a expressão Boca do Lixo seria ostentada com orgulho pelos cineastas que freqüentavam o Centro de São Paulo por causa da quantidade de filmes que saíram de lá.
O cinema da Boca do Lixo não viveu apenas de filmes pornográficos e das populares pornochanchadas (comédias maliciosas). Do final dos anos 50 até o início dos 80, a região produziu trabalhos de todos os gêneros cinematográficos: policial, faroeste, drama e horror, entre outros. O Pagador de Promessas (1962) – dirigido por Anselmo Duarte e o único filme brasileiro que ganhou a Palma de Ouro em Cannes, na França – foi cria da Boca do Lixo.
Segundo o jornalista Alfredo Sternheim, em seu livro “Cinema da Boca – Dicionário de Diretores”, a produção da Boca chegou a responder por mais de 50% dos filmes lançados no Brasil. Tudo isso sem receber verba estatal. Sternheim também dirigiu filmes na Boca do Lixo. E também José Mojica Marins, o Zé do Caixão, Rogério Sganzerla e Carlos Reichenbach, entre outros cineastas renomados. Dos diretores citados, apenas Sternheim e Marins decidiram rodar filmes pornôs anos depois.
Os filmes da Boca tinham espaço nos cinemas por causa da lei de obrigatoriedade de exibições de produções brasileiras que vigorava durante o regime militar. Nos anos 80, os cineastas da Boca tiveram de começar a rodar filmes pornôs para concorrer com as produções estrangeiras que começaram a chegar no Brasil. Foi nessa década que surgiram estrelas como Márcia Ferro. O cinema pornográfico da Boca chegou ao fim no final dos anos 80 com a chegada no Brasil das fitas de videocassetes com filmes estrangeiros.



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