Entrevista com Anselmo Vasconcellos
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Entrevista com Anselmo Vasconcellos


 
O ator carioca Anselmo Vasconcellos tem uma extensa biografia composta por trabalhos dos mais diversos gêneros em cinema, teatro e TV. Ficando apenas no campo do cinema, o homem aparece em dois dos meus filmes brasileiros preferidos de todos os tempos: "O Segredo da Múmia", de Ivan Cardoso, e "Eu Matei Lúcio Flávio", de Antônio Calmon. Portanto, eu mal podia acreditar quando fiquei cara a cara com ele no Festival de Cinema de Gramado, em 2010. Lá também estava um outro ícone, Paulo Cesar Pereio, mas foi com Anselmo que fiz questão de tirar uma fotografia, depois de dizer alguma bobagem do tipo "É uma honra apertar a mão do grande Faraó Runamb!".

É óbvio que eu estava me referindo ao personagem que ele fez em "O Segredo da Múmia", filme que lhe deu a distinção de interpretar o único Faraó e a única Múmia do cinema brasileiro. E eu provavelmente teria bombardeado o pobre ator com perguntas mil sobre sua carreira se ele não estivesse com a maior cara de pressa. Assim, meu único encontro com meu ídolo Anselmo Vasconcellos durou apenas esses marcantes 10 segundos...

Fade-in, um pequeno salto no tempo e, no começo de novembro de 2012, descubro que o ator tem perfil no Facebook - e daquele tipo bem participativo, que revela quando um perfil pertence à pessoa mesmo. Meio sem jeito, mandei uma mensagem particular pedindo se ele se importaria em responder a todas aquelas perguntas que eu queria fazer pessoalmente no Festival de Gramado mas não fiz para não passar por chato. Para a minha surpresa, eis que Anselmo Vasconcellos em pessoa respondeu: "Sinto-me honrado e agradeço a generosidade".

Eu tietando Anselmo Vasconcellos no Festival de Gramado

O timing não poderia ter sido melhor: primeiro, "O Segredo da Múmia" completou 30 anos (sua estreia nos cinemas foi em 21 de outubro de 1982), e a data passou em brancas nuvens na nossa imprensa (se bobear, nem o próprio Ivan Cardoso lembrou); depois, descobri que o próprio Anselmo estava para completar 60 anos (o que aconteceu há poucos dias, em 1º de dezembro), e que ele considerava a publicação dessa entrevista como parte das comemorações do seu aniversário!

Após uma rápida troca de e-mails, que resultou em duas baterias de perguntas (sempre prontamente respondidas pelo ator), duas coisas me chamaram a atenção em Anselmo Vasconcellos. A primeira foi a sua marcante humildade, pois ele comenta com a mesma intensidade sobre seus filmes mais famosos e outros trabalhos menores ou menos conhecidos. A segunda foi o seu amor incondicional pelo cinema e pelas artes em geral: do programa humorístico "Zorra Total" à sua interpretação de Ricardo III nos palcos, Anselmo considera tudo arte e tudo válido, e tem tantos projetos em andamento que torna-se até difícil acompanhar o que ele está fazendo.

Já existe uma ótima entrevista com o ator feita pela Andrea Ormond em 2006 para seu blog Estranho Encontro. Com esta minha, eu tentei não repetir as mesmas perguntas e nem tocar nos mesmos temas, apenas ampliar para outros campos aquela que considero uma entrevista obrigatória: enquanto a Andrea fez um trabalho fantástico resgatando histórias dos trabalhos mais respeitados do ator, como "República de Assassinos" e "Eles Não Usam Black-Tie", eu tentei ir para o outro lado, perguntando primeiro sobre os meus filmes preferidos ("O Segredo da Múmia" e "Eu Matei Lúcio Flávio"), e depois sobre outros menos comentados ("O Torturador" e "A Rota do Brilho").

O resultado o leitor pode conferir a partir de agora...



FILMES PARA DOIDOS: Como você se envolveu com "O Segredo da Múmia"? Em algum momento estranhou o fato de um ator carioca interpretar um Faraó/Múmia?
ANSELMO VASCONCELLOS: Fui convidado pelo Ivan Cardoso. Conhecia o Ivan e seu trabalho com aquela turma fantástica - Hélio Oiticica, Júlio Bressane, José Mojica Marins, Rogério Sganzerla -, e me entusiasmei com a ideia de um filme cheio de referências ao cinema de terror produzido pela Hammer, RKO, etc. O roteiro do [Rubens Francisco] Lucchetti, um autor de historinhas em quadrinhos, ja vinha com esse sabor, e Ivan reunia atores e equipe que perceberam a possibilidade da realização. Não preciso ser egípcio para representar Runamb, o Faraó. Não preciso ser inglês para representar Ricardo III. A concepção da palavra "representar" já me dá esse passaporte legítimo e vermelho.

FPD: Li em uma reportagem da época do lançamento que você foi inicialmente convidado pelo Ivan para interpretar o herói do filme (o papel ficou com Evandro Mesquita), mas preferiu fazer a Múmia. Por quê?
AV: Ivan me convidou para fazer o personagem do Repórter, brilhante na atuação do Evandro Mesquita. Eu pedi para fazer a Múmia pois era uma oportunidade de brincar de Boris Karloff, Lon Chaney, Mojica... Enfim, do cinema B que eu curtia e assistia em cineclubes e sessões de meia-noite daquela época. Queria me juntar a esses colegas que deram ação a estas personagens extraordinárias e incomuns.

FPD: Quais suas principais inspirações para interpretar a Múmia? O clássico com Boris Karloff da década de 30, ou as produções da Hammer?
AV: Conhecia estas produções e atuações, mas trabalho com a tentativa de conexão, com o que acontece no set, no coletivo da filmagem. Não há vestígios de outras "encarnações" no que realizamos.

Anselmo em dose dupla: enfaixado, no papel da Múmia...
...e de cara limpa, interpretando o Faraó Runamb

FPD: É realmente você por baixo das bandagens da Múmia?
AV: Sim, sou eu. Porque a ideia era essa: representar um personagem que é uma máscara de corpo inteiro, sem olhos, sem expressão facial. O [diretor de arte] Oscar Ramos me desafiou me tirando tudo, enfaixando tudo. Karloff tem sua própria máscara facial [em "A Múmia", de 1932], e mesmo imobilizando seu olhar ele tem essa expressão. Eu não tinha nada, este foi o desafio, a brincadeira - o "to play".

FPD: E como foi interpretar debaixo daquela máscara fechada e de todas aquelas faixas? Quais eram as principais dificuldades?
AV: Oscar Ramos e Nina de Pádua [atriz e assistente de direção] me mumificavam literalmente com ataduras e gesso. Levava horas. Quando ficava pronto, eram dificuldades de toda ordem. Filmamos no verão e em lugares difíceis. Não houve nenhum sofrimento, a roupa era uma engenharia bem bolada pelo Oscar, e a máscara permitia alívios entre cada set. O gesso funcionava para ter textura quebradiça, sugerindo envelhecimento. Nos divertimos muito. Fomos felizes e sabíamos. Só usei dublê na cena final do lago, quando a Múmia submerge. Ali foi o grande dublê [Amauri] Guarilha quem atuou - lindamente, por sinal. Conversamos sobre como seria e combinamos da mão ficar por último, como um adeus. Ficou muito bonita e bem feita a cena. Sabíamos que haveria uma bela trilha sonora [composta por Júlio Medaglia e Gilberto Santeiro] e desenhamos a cena. A trilha sonora deste filme é espetacular, um show de referencias e citações, e foi premiada em Gramado.

FPD: Você lembra como foi feita aquela cena em que a Múmia ergue as rodas traseiras do carro do Cláudio Marzo? Aquilo ficou muito bom na tela!
AV: Sim, lembro que eu sugeri ao Ivan erguer aquele MP Lafer com um macaco comum. Então a Múmia se posicionava segurando o carro já no alto, e bastava soltar a trava do macaco e o carro descia. Ivan decupou a cena e a edição ficou perfeita.

Esqueceu o macaco? Chame a Múmia!

FPD: O filme de Ivan tem um elenco fantástico, e algumas celebridades aparecem durante poucos segundos. Como era o set de filmagem com tanta gente famosa junta? Esse pessoal todo interagia, ou filmavam suas pontas e depois iam embora?
AV: O filme teve várias fases de realização. Todo este grande elenco se dividiu nestas etapas e nos encontramos mesmo foi na edição final, brilhante na minha opinião. Atores não usam esse conceito de "pontas", isso me parece jargão de imprensa que inventa coisas mensuráveis para poder situar seus conceitos, críticas e avaliações. Atores fazem seus trabalhos e o tempo é mera ilusão, de ótica inclusive. Tive mais contato com o Wilson Grey, a Regina Casé, o Felipe Falcão e a Tania Boscoli, pelas sucessivas sequências que tínhamos em comum. E as participações de convidadas para a Múmia atacar, que foram maravilhosas. Havia um clima muito gostoso de cumplicidade em brincar com este gênero. Algum material foi filmado em época diferente e se juntou na edição. Ivan e equipe de finalização foram muito espertos e inspirados. Acho fantástico o filme que resultou dessas variadas experimentações.

FPD: Como foi contracenar com Wilson Grey e testemunhar aquela interpretação única e brilhante dele como cientista louco?
AV: Wilson Grey é um ator extraordinário. Uso o verbo no presente porque podemos ver suas atuações memoráveis, elas estão vivas nos rolos dos filmes, nos frames de DVDs e na luz do projetor. Grey é uma assinatura, uma grife de cinema. Sua sabedoria cênica mesclava intuição e desenhos corpográficos. Ele usa seu rosto como máscaras, e mexe as expressões como se as trocasse, mudando significados. Sua qualidade atravessou as diversas faces do cinema brasileiro. Ivan prestou a ele a devida homenagem permitindo estes grandes momentos de atuação livre. Grey brinca com o trágico como ninguém. Sua atuação é uma navalha afiada, eu acho. Foi ele quem deu o tom do filme, eu acho.

FPD: Você lembra onde foram filmadas as cenas que se passam no "Egito"? É verdade que inicialmente consideraram filmar cenas no Egito "de verdade"?
AV: Sim, havia a ideia de se filmar em locações no Egito. Mas descobrimos o Areal da Barra, uma terra nua na época, e filmamos onde hoje é o Condomínio Novo Leblon. Os atores sobem uma duna e olham para o horizonte, e na edição monta com cenas reais das Pirâmides Egípcias, ao som da música-tema de "Os Dez Mandamentos". Eu apareço subindo uma duna montado num puro-sangue árabe que a produção conseguiu. Genial! A apresentação do Cairo é um stock-shot sobre um cartão-postal antigo da cidade. Achados maravilhosos, criativos, e que resultam numa invenção saborosa.

Anselmo montando o cavalo árabe fujão

FPD: Você poderia contar algumas anedotas dos bastidores de "O Segredo da Múmia"?
AV: O que há de interessante para contar de bastidores são situações muito engraçadas que aconteceram, como um mosquito que entrou pelo buraco das narinas da máscara da Múmia. Eu me debatia querendo aliviar no meio de um set, a equipe olhava a cena e achava que eu estava interpretando, e não me acudia. Foi um desespero! Outra: quando montei o cavalo árabe, do campeão Alfinete [José Roberto Reynoso Fernandez, um dos maiores cavaleiros da história do hipismo brasileiro], que nos emprestou e participava como ator, vestido de egípcio com capa, o cavalo se assustou e, no que toquei para correr, ele disparou pela Avenida das Américas e perdi o controle. Alfinete, montado em outro cavalo, correu para me ajudar, mas o meu cavalo, um campeão, não se deixava alcançar. Eu me agarrei na crina dele, colei as pernas na barriga do colosso árabe e esperei ele resolver parar. Sufoco!

FPD: Sabe-se que a produção parou várias vezes e enfrentou inúmeras dificuldades, inclusive problemas de falta de dinheiro. Como foi trabalhar sob essas condições?
AV: É sempre difícil lidar com a falta de recursos e condições adversas, e os riscos que tudo isso envolve. Aprendi tanto que hoje sou consultor da empresa Cofargo S.A., que avalia e administra riscos e seguranças na área de entretenimento. Filmes hoje são feitos com esta noção de organização e cuidados. Queremos cada vez mais organização, competência e segurança. Um negócio como outro qualquer, que visa o bem-estar e a geração de empregos e trabalho.

FPD: Quanto tempo faz desde a última vez em que reviu "O Segredo da Múmia", e o que você acha do filme? Sobreviveu à passagem do tempo?
AV: Vi há pouco tempo, numa sessão promovida pelo cineasta Cristiano Requião em seu Cineclube Doméstico. Gosto da realização, de rever figuras fantásticas como o genial Wilson Grey. O trabalho dele é uma reliquia dos seus anos no cinema brasileiro. Uma atuação antológica, original e engraçadíssima. O Felipe [Falcão], Jardel Filho, Colé, Clarice Piovesan, Dora Pellegrino, Maria Zilda, Hélio Oiticica de ator, Cláudio Marzo, Patrícia Travassos, Joel [Barcellos], [Paulo Cesar] Pereio, Mojica, Regina Casé, Evandro Mesquita falando pela primeira vez "OK, você venceu: batata-frita", Tania Boscoli deslumbrante, e a musa do filme, Nina de Pádua. É tudo um colírio na saudade. Como diz bem a Regina Casé: "Parece que é uma outra encarnação".

Terá Clarice Piovesan descoberto o Segredo da Múmia?

FPD: Alguma vez o papel de Múmia foi motivo de piada na sua carreira?
AV: A Múmia é um personagem clássico do imaginário do cinema de terror, risível em nossa concepção. Oscar Ramos tingia as faixas que cobriam a personagem de verde. Ivan filmou um ponto de vista da múmia com gaze na lente. O inesquecível clown e comediante Colé com Maria Zilda no motel, em cena antológica, exclamava, ao ver a invasão da Múmia no seu quarto: "Uma múmia? Que porra de motel é esse?". Uma gag típica de Teatro de Revista. A intenção, portanto, era fazer rir.

FPD: Existe um boato de que você teria brigado com o Ivan depois da estreia de "O Segredo da Múmia".
AV: Não me lembro o que foi, mas certamente a culpa foi minha e deve ter sido uma bobeira qualquer, que não resultou em nenhuma mágoa da minha parte. Admiro o Ivan neste trabalho.

FPD: Você assistiu "O Sarcófago Macabro", que ele dirigiu em 2006? É um curta e piloto de série que usa trechos de "O Segredo da Múmia" editados com algumas cenas novas estreladas pelo Carlo Mossy. Ele interpreta um agente da CIA investigando nazistas que vêm para o Brasil disfarçados como múmias. Nesse curta, o Ivan explica que Runamb seria o próprio Adolf Hitler mumificado! O que acha disso, e da oportunidade de "contracenar" com o grande Carlo Mossy mesmo sem jamais encontrá-lo no mesmo set?
AV: Conversei com o Ivan quando ele estava retomando as filmagens deste piloto. Mas não sei considerar estas ideias, não vi ainda no que resultou. Fiz um longa com o Mossy em Gramado e curtimos muito juntos fazer cinema, pensar cinema e superar dificuldades.



FPD: Você participou de dois filmes sobre o Esquadrão da Morte ("Eu Matei Lúcio Flávio" e "República dos Assassinos"). Por isso, queria saber como você vê a polêmica em relação a um filme recente, "Tropa de Elite", que também enfocou o tema da brutalidade policial.
AV: Não vi "Tropa de Elite" até hoje. Lamento. Tenho muitos filmes para ver. Muitos ainda não consegui ver. Acompanho produções independentes que nem chegam ao cinema e que vejo na internet, em sites fantásticos que nos dão acesso a jóias autorais de toda parte do mundo. Tenho meu cineclube, uma pequena e significativa coleção de clássicos, e a ida à sala do cinema é bem criteriosa e selecionada pelo que me proporciona de enriquecimento. Não acompanho a moda ou a mídia. Tenho meu faro e a minha fome. Busco satisfazê-la.

FPD: Você se considera um cinéfilo? Ainda vai muito ao cinema?
AV: O cinema é meu abrigo! Sempre foi. Venho da Geração Paissandu, Cinema I, Cineclubes. Nada como ir a uma sala de cinema. Meu favorito é o Cine Bardot, de Búzios.

FPD: Você poderia falar um pouco sobre Antônio Calmon? Sou fã do seu cinema cheio de referências, inclusive costumo escrever que ele tem um estilo semelhante ao do Quentin Tarantino antes mesmo de o Tarantino existir.
AV: Calmon é um criador inteligentíssimo, culto em tudo. Antecipou, com seus filmes, tendências que se consagraram depois dele, como as jogadas estilísticas do Tarantino. Calmon gosta de atores com assinatura, e ele os segue com sua câmera devassa. Recentemente nos reencontramos numa mostra em sua homenagem no Rio. Sua lucidez sobre esta época e outras é uma aula. Ele falou sobre os atores e me honrou com uma análise do meu trabalho que me encheu de lágrimas. Falou sobre a profundidade do meu alcance como intérprete. Ele continua criando.

FPD: E o que disse o Calmon para lhe emocionar tanto?
AV: Por ocasião da Mostra "Calmon em 3 Atos" no Rio, recentemente, pude reencontrá-lo e ele me chamou à mesa que liderava para o debate. Sentei ao seu lado. Ele analisou meu trabalho em seus filmes e apontou a minha entrega, invenção e comprometimento com o fazer como sendo uma qualidade de aprofundamento da interpretação. Somou a isso a observação da minha coragem em interpretar outsiders e borderlines, e de entrar e sair deles com habilidade no espetáculo.

Como policial executor em "Eu Matei Lúcio Flávio"

FPD: "Eu Matei Lúcio Flávio" é outro dos meus filmes brasileiros preferidos. Acredito que deve ter provocado muita polêmica na época, pela maneira como representa o Esquadrão da Morte e por ter recebido a "bênção" do próprio Mariel Mariscot [interpretado por Jece Valadão no filme].
AV: Esses anos que produziram estas obras eram obscuros nas questões dos debates. Essas obras anteciparam a barbárie que se avizinha. Essa São Paulo dos últimos dias parece com o quê? Somos um pais com 55.000 homicídios por ano! Se você ver esses filmes hoje, vai entender muita coisa e refletir sobre o papel da polícia, dos bandidos e sua submissão a um sistema cruel e desumano. Esta pergunta merece um livro, uma análise, debates que hoje teriam mais alarde. Hoje temos a internet, e ela poderia ter um papel relevante na elaboração de pensamentos e considerações. Estou aqui te respondendo, na internet, e pensando nisso, no que posso dizer de tudo isso. Gustavo Dahl, saudoso pensador do cinema, dizia que "Eu Matei Lúcio Flávio" é um filme cult. Merece ser estudado, debatido sobretudo.

FPD: Você chegou a conhecer o verdadeiro Mariel Mariscot? Ele participou do processo de realização do filme?
AV: Não conheci. Ele já estava preso quando fizemos estes filmes. Mas aquele medalhão da Caveira - Scuderie Le Cocq, que o Jece Valadão usa no filme, foi emprestado pelo próprio Mariel.

FPD: Como foi sua preparação para viver o policial assassino em "Eu Matei Lúcio Flávio"? Aquela cena dele torturando um suspeito ao som de "Lady Laura", do Roberto Carlos, é genial!
AV: Eu acompanhei muitos desses crimes pelos jornais da época. Morei em Vila Isabel, e ali ouvia e lia sobre esses lendários psicopatas. Não é dificil representá-los: são óbvios, banais em sua insanidade. Difícil é interpretar um artista, um pensador, um iluminado, ou simplesmente o homem comum.

FPD: Graças a essa parceria com o Calmon, você trabalhou com uma lenda do cinema brasileiro, Jece Valadão. Como era o velho Jece?
AV: Conheci o Jece na fase da Magnus Filmes, seu estúdio e produtora. Fiz vários filmes ali, não só os do Jece. Neste período, ele se cercava de mistérios, ficava recluso em sua sala e camarim. Não tive acesso a ele e nem fui seu amigo.

Um padre ligeiramente suspeito em "O Torturador"

FPD: Acho "O Torturador", outra parceria sua com o Calmon, uma divertida maluquice. Eu sempre lamento que filmes doidos e divertidos como esse e "O Segredo da Múmia" não sejam mais produzidos no Brasil. Qual sua opinião sobre isso? Será que há espaço para filmes como "O Torturador" nesse nosso cinema pós-Retomada?

AV: Também me divirto com esses filmes irreverentes, engraçados e falsamente escapistas. São surpresas que o tempo vai revelando e fazendo justiça aos seus méritos, muitos deles negados na sua época de lançamento. A atualidade vem marcada pelo escaldante deserto que o Governo Collor nos impôs. Perdemos alegrias, humor. Ganhamos vontade de expressar outros matizes, outras cores, outros olhares. Eu canto baixinho neste momento o samba plataforma de João Bosco, da trilha sonora do filme "Se Segura Malandro", do [Hugo] Carvana:
"Não põe corda no meu bloco
Nem vem com teu carro-chefe
Não dá ordem ao pessoal
Não traz lema nem divisa
Que a gente não precisa
Que organizem nosso carnaval
Não sou candidato a nada
Meu negócio é madrugada
Mas meu coração não se conforma
O meu peito é do contra
E por isso mete bronca
Neste samba plataforma
Por um bloco
Que derrube esse coreto
Por passistas à vontade
Que não dancem o minueto
Por um bloco
Sem bandeira ou fingimento
Que balance e abagunce
O desfile e o julgamento
Por um bloco que aumente
O movimento
Que sacuda e arrebente
o cordão de isolamento."

FPD: Como você se meteu naquela tralha chamada "A Rota do Brilho", de Deni Cavalcanti? Sei que o filme devia ser um policial sério, mas hoje só pode ser visto como comédia involuntária.
AV: Eu não fazia cinema há um tempo, não havia cinema sendo produzido. Estava em Sampa e aproveitava para frequentar a Boca do Lixo, os cinemas underground, a Praça Roosevelt. Fiquei sabendo desta produção e fui lá pedir para fazer. Queria filmar, não julguei méritos e nem currículos. Queria o set, a câmera. Fiz. Faltava isso.

Tomando leite no bar em "A Rota do Brilho"

FPD: Um detalhe divertido sobre "A Rota do Brilho" é que ali tem o Deni, que estava ligado ao cinema erótico, o José Miziara, que dirigiu filmes pornôs, o Marcos Manzano, que era dançarino do Clube das Mulheres. Você não ficou com medo de ficar marcado por aparecer numa produção classe C da Boca do Lixo?
AV: Medo? Eu estava vivendo em Sampa pela primeira vez, conhecendo o que ainda havia de Boca de Lixo, underground, Praça Roosevelt. Trabalhava na Band e conheci outros profissionais, com outras posturas. Adriano Stuart foi um cara que me ensinou a conhecer São Paulo, suas estórias, suas possibilidades. [Ronald] Golias, Miziara, Agnaldo Rayol, Felipe Levy, Moacyr Franco... Era outro mundo. Com ele conheci Toninho Meliande, fotógrafo deste filme, atores que sobreviviam das mais variadas formas e sem glamour. Uma escalada tortuosa e cheia de obstáculos. Mas me treinou.

FPD: Mas acredito que deve ter sido um trabalho curioso para um grande ator estar lado a lado com vários "não-atores", incluindo um integrante do Clube das Mulheres promovido a astro. Como foi a experiência?
AV: O cinema permite que você trabalhe e reúna diversidades e conhecimentos diferenciados. Há experiências bem-sucedidas neste âmbito, como o Neorrealismo Italiano, para ficar num único exemplo. O resultado de um filme sempre sofrerá críticas e reflexões, e para isso são feitos e exibidos. Guardo e comento o que é positivo, o que aprendi, e outros aspectos eu esqueço e/ou deleto. Acredito no panfleto do Luiz Severiano Ribeiro: "Cinema é a maior diversão".

FPD: Fale sobre sua relação com Hugo Carvana como diretor, já que você aparece em quatro filmes dele.
AV: Carvana mantém viva a tradição do cinema popular brasileiro que começou na Atlântida Cinematográfica. Para ele e para mim, Atlântida não é um continente desaparecido. Vamos sempre lá.



FPD: Na sua filmografia dos anos 90 aparecem pelo menos duas co-produções internacionais que hoje são muito difíceis de encontrar: "Boca" (1994), que teria sido produzido pelo norte-americano Zalman King, e "Filhas de Iemanjá" (1995), da finlandesa Pia Tikka. O que pode dizer sobre esses filmes?
AV: Fiz também um filme canadense pretensamente humanitário, "Comme Les Oiseaux Dans Rio", de François Labontè. Em "Boca" eu peguei um diretor americano que não era o Zalman. Ele me curtia e filmamos bem. Tinha a Rae Dawn Chong e um elenco grande nacional, Tarcísio [Meira], [Carlos Eduardo] Dollabella, [José] Lewgoy. Fiz teste para fazer o filme e a filmagem era bem organizada. Ele passa no cardápio dos Telecines. Pude vê-lo duas vezes e me escapa uma consideração substantiva para o que vi, o resultado. É confuso, nunca entendi com clareza para poder determinar coisas aqui e agora. Com a Pia, era um filme de formatura dela lá na Academia Finlandesa, e feito aqui com poucos recursos. Tinha uma poesia inalcançável para nós, brasileiros. Recentemente, participei de "Suriname Gold", um filme americano produzido pela New York University e dirigido pelo brasileiro Paulo H. Tostelines. Muito interessante e muito bem realizado, está em finalização nos EUA.

FPD: O estilo de direção dos estrangeiros era muito diferente do adotado pelos cineastas brasileiros?
AV: É bastante curiosa a relação. Lembro que eles comentavam muito sobre meu trabalho, mas não consegui muita comunicação com eles. Os canadenses eram muito frios, esquemáticos; Pia, um doce e uma mulher linda, glamourosa.

FPD: É bom lembrar que, nessa época negra do nosso cinema (entre 1990-94), era muito difícil até para atores renomados conseguir trabalho em filmes brasileiros, até porque "filmes brasileiros" quase nem existiam. Quais suas lembranças desse triste capítulo da história do nosso cinema?
AV: Atravessamos um deserto escaldante. Eu sofria vendo os colegas buscando sobrevivência em outras frentes e profissões. Parecia que tínhamos sido expulsos de casa. Um triste exílio. Acho estranhíssimo que não se fale mais nisso, não se cobre os valores que sumiram do nosso patrimônio artístico.

FPD: Você sempre teve uma presença muito forte em cena, e é um ator excelente, mas nunca chegou a estrelar uma longa. Você se ressente disso?
AV: Tenho um filme inédito feito recentemente em Gramado como protagonista, "Réquiem para Laura Martin", de Paulo Duarte e Luiz Rangel. Sou protagonista de curtas bem interessantes e premiados: "República dos Ratos", de Beto Mattos (pelo qual recebi o prêmio de Melhor Ator no Festival de Santa Maria/RS), "Madrugada de Inverno", de Carlos Alberto Sozza (prêmio de Melhor Ator no Festival de Mogiguaçu/SP), "O Coração de Dom Quixote", de Nina Tedesco, onde faço Dom Quixote, "Brilho da Noite", de Emiliano Ribeiro, "Copa Mixta", de José Joffily, "Herois", de Miguel Oniga...


Veja o curta "Madrugada de Inverno"



FPD: Poderia falar mais sobre "Réquiem para Laura Martin"?
AV: Sou apaixonado pelo roteiro do Paulo Duarte. "Réquiem para Laura Martin" narra um pacto sinistro e afetivo entre um Maestro e sua musa. Um criador complexo, um artista que dirige sua vida como uma orquestra. Dá ritmos a fatos e conduz intenções subversivas no cotidiano de suas relações com as pessoas que o cercam, como se fossem instrumentos que ele domina. Um filme de respiração, de fôlego autoral. Filmamos tudo na europeia Gramado, num clima frio e em paisagens deslumbrantes. Fomos capturados pelo filme que resulta desses dias e de uma finalização que o Paulo Duarte orquestrou em sua produtora em São Paulo. Gosto demais deste espetáculo. O produtor Fernando Muniz está trabalhando seu lançamento e distribuição. Em festivais distintos, no Brasil e em Madrid, ganhamos prêmios de trilha sonora, direção e melhor atriz (Cláudia Alencar, em atuação inspiradíssima).

FPD: Você parece ter uma bela relação com o Rio Grande do Sul.
AV: Amo o Rio Grande do Sul. É a "Europa" que vou sempre. Adoro a cultura e aquela gente gaúcha. Já percorri muitas cidades, conheço a serra, o interior, o centro e algumas fronteiras. Me surpreendo sempre por lá. Fiz um filme ["O Carteiro"] com Reginaldo Farias em Vale Vêneto - uma Xangri-Lá Italiana, fica na Quarta Colônia, um lugar extraordinário! As ruas não têm nomes e as casas não têm números. Fomos felizes nesta terra. Tenho parcerias lindas por lá com gente de cinema, cultura, teatro, grandes amigos e amores eternos. Filmei "República dos Ratos" em Porto Alegre com Beto Mattos, fui homenageado nacional do FLO - Festival do Livre Olhar, da Biah Werther e equipe. Fui premiado em Santa Maria com o Troféu Vento Forte de Melhor Ator, e dou workshops patrocinados pelos SESC do Rio Grande do Sul. Montei "O Último Carro de João das Neves" em São Leopoldo, no Festival SESC Aldeia Capilé. Fui diversas vezes ao Festival de Gramado, e tenho projetos naquela área bem significativos para breve.

FPD: Em quase 40 anos de carreira, você interpretou inúmeros vilões, uma múmia, um travesti, policiais corruptos e bonzinhos... Qual desses papeis foi o mais difícil, e que personagem você ainda não fez no cinema, mas adoraria fazer?
AV: Gosto muito do personagem "O Maestro", do longa "Réquiem para Laura Martin". Um artista, um criador complexo, delicado, que exigiu extrema verdade para fazê-lo. Gostaria de fazer o João do Rio, personagem que interpretei na peça de Aguinaldo Silva "Isadora Duncan - É Dançando que a Gente se Aprende". João é um figura extraordinária, um autor, um dândi.

FPD: Em sua opinião, qual foi o ponto alto da sua carreira, e por quê?
AV: Fazer Ricardo III no Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, na íntegra, os cinco atos. Que texto, que personagem, que privilégio que o Antonio Pedro Borges me concedeu!


Veja o curta "O Coração de Dom Quixote"



FPD: Qual o seu trabalho preferido no cinema?
AV: Gosto muito de "O Coração de Dom Quixote". Viver este mitológico personagem é uma vibração fortíssima. Ele é um tesouro da humanidade, um brilho eterno de um autor fantástico.

FPD: E qual filme você gostaria de apagar da sua filmografia?
AV: Nenhum.

FPD: Com qual diretor brasileiro você gostaria de trabalhar ou de ter trabalhado?
AV: Muitos. Todos. Cada filme bem dirigido me desperta este desejo. Gosto muito de trabalhar com jovens diretores que estão despontando. Vou filmar com alguns em breve. Júlia Cruz está na mira!

FPD: Lembra qual foi o último bom filme que viu da recente safra?
AV: Eu sou apaixonado pelo "Réquiem para Laura Martin", esse filme não me sai da retina!

Durante as filmagens de "Réquiem para Laura Martin"

FPD: O que você está fazendo hoje e quais são os seus projetos futuros?
AV: Vou dirigir, a convite do Núcleo de Cinema da Bahia, o curta "Alô Boys" em Maracangalha, Bahia. Estou filmando com Carvana "A Casa da Mãe Joana 2". Tenho convite para "Lampião - O Filme", de Bruno Azevedo, e "Um Longo Inverno", de Marco Schiavon. O livro "Comédia, A Arte da Irreverência" [capa abaixo], em parceria com a jornalista Raquel Villela, é um projeto de cinco anos de estudos e pesquisas que complementam um overview sobre a comédia, os fatos e os tempos, teoria e prática da engenhosidade da comédia - um compêndio sobre a comédia. Estamos lançando pelo país, e parte dele integrou um livro russo de vários autores. Continuo no "Zorra Total", defendendo essas ideias todas. Desenvolvo uma parceria com o Maestro Mateus Bruno, regente da OSB Jovem [Orquestra Sinfônica Brasileira], e vamos trabalhar unindo teatro e sinfonias. Dirijo o show da [cantora e atriz] Bia Sion e promovo encontros criativos num curso livre na Escola de Teatro Martins Pena, onde estou há 24 anos. Viajo em parceria com o SESC do Rio Grande do Sul, desenvolvendo trocas culturais. E, quando posso, vou pescar na praia.


FPD: Qual sua relação com o programa humorístico "Zorra Total"? Muita gente lamenta ver um grande ator como você no cast de um programa tão popular, mas você parece gostar muito do que faz ali.
AV: O "Zorra" é um humor que vem da tradição do circo. Uma audiência incrível, une "Brasis" nas noites de sábado! Minha infância foi aprender a amar o circo, eu ia sempre e meus pais amavam também. Cresci com o perfume do picadeiro, internalizei a irreverência dos clowns. Trabalhei cinco anos com um clown genial, um dos maiores do mundo, Ronald Golias, e com ele e por ele com um grande elenco de artistas populares. Na adolescência, via os filmes da Atlântida e Herbert Richers. Conheço muito, com grande intimidade, os trabalhos de Oscarito, Ankito, Grande Otelo, Wilson Grey, Anselmo Duarte, Violeta Ferraz, Zé Trindade, José Lewgoy e também o grande Mazzaropi e seu inesquecível Jeca. Trabalhei com Adriano Stuart e Walter Stuart, de origem circense, e com eles aprendi muito. Trabalhei com Vic Militello, também de família de circo, e com ela, somados a Antonio Pedro, Alexandre Regis, Luca de Castro, Claudia Borionni, Lafayete Galvão e tantos outros, aprendi a trabalhar os dramalhões do circo-teatro. Criamos uma escola de circo-teatro que fez grande sucesso no Rio, o "Terror na Praia". Anos em cartaz com teatro de repertório e shows de variedades. Cheguei ao "Zorra" por aí e me sinto em casa lá. Estou desde o início do programa, há 13 anos. Estudei muito, anos e anos, o trabalho dessa gente e de nossos colegas antepassados. Por isso tive o intento de escrever um livro, com a Raquel Villela, para dar respostas a este incrível preconceito contra o humor popular, a comédia. O papel da comédia é altamente relevante para o desenvolvimento humano, social e político. É a maior arma contra o autoritarismo e pedantismo intelectual. Tenho e sinto o maior orgulho de ter feito dupla cômica com meu ídolo de infância, adolescência, maturidade e da velhice que virá: Ronald Golias!

FPD: Para terminar, sei que são mídias completamente diferentes, mas hoje você prefere trabalhar com cinema ou TV?
AV: Gosto muito de trabalhar, atuar, dirigir... tudo e em todas! Sou um fominha de bola, como se diz nas peladas. Tenho muitas recordações do futuro, meus filhos lindos, minha amada Cristiana, meus amores todos. Muita vontade de aprender sobre a vida e a arte. Espero conseguir.


PS: Por último, mas não menos importante, gostaria de deixar os meus sinceros agradecimentos à lenda viva Anselmo Vasconcellos pelas respostas e pela atenção. Parabéns pelos 60 anos de vida e também pelos quase 40 de carreira (que serão oficialmente contabilizados em 2013). E que continue nos surpreendendo com suas interpretações únicas e personagens exóticos e imortais!




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