O passado do Japão é repleto de guerras e intrigas - a bem da verdade, como o passado de toda nação que se preze. Da metade do século 15 até o início do século 17, desenrolou-se por lá o período batizado Sengoku, ou "Era dos Reinos Combatentes", marcado por inúmeras revoluções, traições, intrigas políticas e batalhas sangrentas. O período Sengoku levaria à unificação do poder político sob o comando do shogun Tokugawa. Mas, antes disso acontecer, muito sangue rolou.
A GUERRA DOS NINJA (o título em português é assim mesmo, com plural e singular) é uma impressionante fábula épica produzida pela Toei Company no início dos anos 1980. A história se passa justamente no período Sengoku.
Mas, além das revoluções, trações, intrigas políticas e batalhas sangrentas narradas nos livros de história, o filme também toma algumas, digamos, "liberdades poéticas", introduzindo na história real elementos como samurais voadores com poderes sobrenaturais (inclusive mortíferos disparos de vômito!!!), trocas de cabeças decepadas e ressurreições mágicas, poções afrodisíacas e até um sujeito que dispara dardos pelos olhos!!!
Resumindo: é mais um daqueles FILMES PARA DOIDOS que me fazem ficar pensando no que diabos tem na água que os japoneses bebem...
Menos uma aventura de pancadaria e mais uma fábula "artística" no estilo dos recentes "O Tigre e o Dragão" e "O Clã das Adagas Voadoras" (embora "filme de arte" com vômito mortífero seja muito mais divertido!), A GUERRA DOS NINJA foi baseado na história do Japão, mas também num livro de Fûtarô Yamada, "Iga Ninpōchō", publicado originalmente em 1964.
Yamada era especialista nessas fábulas com ninjas e samurais usando poderes mágicos, e o mesmo livro deu origem a um mangá mais recentemente. Eu, na minha quase ignorância em relação à cultura oriental, classificaria tanto a história quanto o filme como "Wuxia", um gênero da ficção chinesa encontrado em livros, filmes, quadrinhos e artes em geral, e que narra histórias de heróis e batalhas reais misturando-as com elementos fantásticos, como guerreiros que voam ou usam magia.
Entretanto, sites muito mais especializados no negócio do que eu afirmam que não se encaixa como Wuxia, embora a trama de A GUERRA DOS NINJA também misture personagens e acontecimentos reais com aquelas maluquices típicas das aventuras orientais. Na dúvida, vamos deixar a questão em aberto...
Para entender o filme, é preciso antes fazer um intensivão de cultura japonesa. Na "versão oficial" dos livros da história de lá, existe a figura de um conspirador chamado Hisahide Matsunaga, que, aliado ao clã Miyoshi, tramou o assassinato do shogun Ashikaga para chegar ao poder. Depois, aliou-se a Oda Nobunaga para eliminar os ex-companheiros do clã Miyoshgi, e finalmente, para ficar com o poder só para ele, declarou guerra ao próprio Nobunaga, quando foi vencido.
Sabendo que o rival iria ficar com a sua cabeça decepada como troféu, e também com seu valioso pote para fazer chá (chamado "Hiragumo", ou "Pote da Aranha"), o ardiloso Matsunaga resolveu cometer suicídio, mas ordenou que os servos depois cortassem sua cabeça, colocassem no tal pote e explodissem ambos com pólvora. Assim foi feito, privando o vencedor Nobunaga de seus troféus e garantindo uma saída de cena em alto estilo para Matsunaga!
(Viram só? FILMES PARA DOIDOS também é cultura!)
Vários dos elementos dessa história inacreditável, das conspirações de Matsunaga contra o clã Miyoshi ao tal pote de chá Hiragamu, aparecem em A GUERRA DOS NINJA. O livro de Yamada foi adaptado para o cinema por Ei Ogawa.
No filme, Hisahide Matsunaga virou Danjo Matsunaga (interpretado por Akira Nakao), e seu conflito com o clã Miyoshi começa por causa de uma mulher (claro!), a bonita Ukyodayu (Noriko Watanabe), que é a jovem noiva do mas velho dos Miyoshi (Noboru Matsuhashi, de "Portal do Inferno").
Sabendo que nunca poderá tê-la pelos "meios oficiais", Danjo apela para o famoso e maligno feiticeiro Kashin Koji (Mikio Narita, de "Mensagem do Espaço"). O bruxo tem a receita para uma mirabolante fórmula afrodisíaca que fará com que a bela Ukyodayu fique caidinha por Danjo. O único problema é que a tal fórmula é um pouquinho, digamos, complicada de preparar.
Menos mal que o feiticeiro empresta a Danjo seus cinco capangas, uns monges demoníacos que usam chapelões, voam, têm poderes mágicos bizarros (como o tal disparo de vômito mortífero) e podem ter sido a inspiração para personagens bem parecidos em "Os Aventureiros do Bairro Proibido", de John Carpenter.
Além de dez tipos de ervas raras e do famoso Pote da Aranha, o afrodisíaco requer lágrimas da pretendente para funcionar. Sabendo que jamais conseguirá chegar tão perto de Ukyodayu para obter essa parte da receita, Danjo manda os cinco monges voadores sequestrarem Kagaribi, que é a irmã gêmea bastarda de Ukyodayu (interpretada pela mesma atriz).
Kagaribi, por sua vez, está apaixonada pelo jovem ninja Jotaro (Hiroyuki Sanada, o professor Takayama da série "Ringu"). O rapaz até já lhe ensinou alguns truques ninjas, como o de cortar bambu com as mãos nuas, soltando uma espécie de raio laser azulado com os dedos (!!!).
O idílio romântico dos dois no meio de um bosque é interrompido com a chegada dos monges voadores. Jotaro é imobilizado pelo vômito mortífero de um dos bruxos (e vocês nem imaginam o quanto eu rio aqui sozinho toda vez que escrevo isso "vômito mortífero").
A meleca atinge o rosto do pobre rapaz e se solidifica. Faça um favor a si mesmo e veja essa cena, no vídeo abaixo!
Como vencer um ninja usando vômito
Enquanto Jotaro sofre com vômito duro na cara (!!!), os monges levam Kagaribi até o palácio de seu chefe. Danjo pretende estuprar a garota para poder recolher suas lágrimas. Mas, prevendo seu triste destino, Kagaribi prefere cometer suicídio, cortando a própria cabeça (!!!) com o truque da mão de raio laser (!!!).
E a coisa não acaba por aqui. Acontece que os monges malvados conhecem um truque bizarrísimo para ressuscitar os mortos: eles decepam a cabeça de uma criada de Danjo e simplesmente trocam as cabeças das garotas - o corpo de Kagaribi fica com a cabeça da pobre criada, e vice-versa!!! Assim eles conseguem estuprar o corpo de Kagaribi e recolher as lágrimas necessárias para o feitiço.
Aí os problemas recomeçam: deixado esquecido num canto, o corpo da criada com a cabeça de Kagaribi desperta, rouba o Pote da Aranha com a poção afrodisíaca dentro e foge de encontro a Jotaro.
A garota é eventualmente morta, enquanto o jovem ninja passa a ser caçado implacavelmente pelos monges voadores e resolve proteger a fórmula com sua própria vida para que Ukyodayu não seja enfeitiçada - e porque ele simplesmente não joga fora o maléfico afrodisíaco e se livra dos problemas é algo que foge à minha compreensão!
Como deve ter ficado claro pelo resumo, A GUERRA DOS NINJA é uma coleção de belíssimas imagens - ora violentas, ora coloridas, ora românticas, ora acachapantes -, e também dessas maluquices tipicamente orientais, como corpos decapitados que ficam de pé jorrando sangue como um gêiser.
A trama é naturalmente absurda, mas se leva a sério, com pouquíssimo humor (sem contar, é claro, o humor involuntário). Portanto, não é todo mundo que vai embarcar e engolir o excesso de absurdos, principalmente porque uma maluquice logo vem seguida de outra ainda pior. Mas o clima de estranheza deve passar depois dos 15 minutos iniciais, que já bombardeiam o espectador com toda sorte de bizarrices; quem conseguir sobreviver a isso, vai encarar até o final (trágico, porém poético) numa boa.
Na verdade, é miraculoso que o diretor Kôsei Saitô (um veterano que fez pouquíssimos filmes) tenha conseguido realizar uma aventura interessante com base numa trama tão trágica e deprimente, em que personagens inocentes são mortos cruelmente a todo momento (o destino da pobre Kagaribi é notavelmente perverso).
As cenas de ação e de luta são bem filmadas e particularmente bem coreografadas pelo astro Sonny Chiba, que aparece num pequeno, mas importante papel (entrando em cena apenas no começo e na conclusão).
E o roteiro também inclui outras particularidades históricas do passado do Japão, como o incêndio criminoso do Templo Budista de Nara (que realmente aconteceu em 1567, e foi atribuído a Matsunaga, no filme e nos livros de história), ou a presença de Hattori Hanzo, um famoso ninja do século 16 que já foi usado como personagem em diversos filmes, inclusive em "Kill Bill", de Quentin Tarantino (então interpretado por Sonny Chiba).
Originalmente batizado "Iga Ninpôchô" (Guerras Ninjas), como o livro em que se baseia, o filme ganhou todo tipo de título em seus lançamentos comerciais no Ocidente, de "Black Magic Wars" até "Death of a Ninja".
No Brasil, foi distribuído em VHS pela Transvídeo como A GUERRA DOS NINJA e saiu numa época ingrata, em que aquelas aventuras ocidentais com ninjas (tipo "American Ninja" e "Ninja - A Máquina Assassina") faziam sucesso nas locadoras.
Deve ter sido um choque para muita gente que alugou a fita imaginando que veria um filme de ação "comum", deparando-se então com essa fábula maluca e mórbida. Felizmente, só o vi "depois de velho"; fico imaginando o estrago que algumas imagens fariam na minha cabeça de moleque.
E ironicamente, apesar do título, um único ninja com aquela tradicional roupinha preta e mascarado aparece no filme... e durante uns 10 segundos, no máximo!
Tudo considerado, A GUERRA DOS NINJA é um pouco difícil de acompanhar, principalmente para um pobre ocidental que desconhece a cultura e a história do Japão (essas explicações todas que você encontrou de lambuja aqui na resenha eu tive que pesquisar na internet DEPOIS de ver o filme).
Mas é um filme que eu recomendo fortemente apenas pelo clima mágico/fantástico, e por cenas belíssimas como a dos jovens Jotaro e Kagaribi no bambuzal antes da encrenca começar, ou da cabeça decapitada que cai girando por causa do chapelão que o finado usava no momento da morte.
São imagens tão bonitas (mesmo quando fortes e sangrentas) e hipnóticas que acho que eu veria o filme até sem legendas, descartando os diálogos em prol do visual. Porque, no fundo, essa é uma daquelas aventuras cujo charme é justamente a esquisitice, e não a trama propriamente dita - na linha do incompreensível "Duna", de David Lynch.
Claro, sempre vai aparecer um daqueles malas reclamando que A GUERRA DOS NINJA é muito "surreal" com suas trocas de cabeças, vômitos mortíferos e ninjas voadores. Ironicamente, às vezes são os mesmos caras que aceitam numa boa os filmes ocidentais de super-heróis, em que a picada de uma aranha radioativa faz alguém escalar paredes e lançar teias, ao invés de morrer contaminado.
Ou então pessoas que aceitam numa boa um certo livro muito mais fantasioso chamado "Bíblia Sagrada", que tem pessoas caminhando sobre as águas, cobras falantes e um sujeito que vive dias dentro da barriga de uma baleia.
Comparando com isso tudo, A GUERRA DOS NINJA até parece bem menos absurdo...
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