Na segunda metade dos anos 1990, eu estava completamente viciado naqueles jogos de tiro em primeira pessoa para computador. Em 1996 ninguém tinha internet ainda, e os PCs domésticos eram aqueles velhos 486 e Pentium 5, com capacidade de processamento bem menor que as máquinas de hoje. E ainda que os jogos do gênero tenham evoluído bastante nesses quase 20 anos, confesso que prefiro a simplicidade daqueles dos anos 90, que não exigiam que o jogador tivesse que decorar 30 comandos no teclado para poder andar e atirar nos inimigos.
Comecei jogando o clássico Wolfenstein 3D, que a galera da época conhecia como WOLF3D porque era esse o comando executável que você digitava no DOS para rodar o jogo (algo que parecerá aramaico para a geração leite-com-pêra que já pegou computador com Windows). Mas o jogo do gênero pelo qual eu me apaixonei foi Doom. Nada do que veio depois, pelo menos na minha modesta opinião, conseguiu superar as horas de diversão com jogabilidade simples que o velho Doom me proporcionou.
Então, num belo dia entre 1996-97, lá estava eu conferindo os lançamentos em vídeo na locadora quando me deparo com ADRENALINA, uma fita com essa capinha que você vê aí em cima. O filme era estrelado por Christopher Lambert e pela gostosa que tinha feito a alienígena peladona em "A Experiência" no ano anterior, Natasha Henstridge - como as filmagens de ADRENALINA também aconteceram em 1995, eu desconfio que ele foi gravado antes que o dinheirudo "A Experiência", mas isso não vem ao caso.
Levei a fita para casa mais pelo Lambert, pela Natasha e pelo resumo no verso da capa do que pelo diretor: o infame Albert Pyun, que, à época, dirigia de quatro a seis filmes baratos POR ANO para abastecer as locadoras ao redor do mundo. Por exemplo: só em 1996, o ano de ADRENALINA, ele também lançou "Ravenhawk - Instinto Assassino", "Omega Doom - A Maldição", e as partes 3 e 4 de sua franquia "Nêmesis", essas filmadas ao mesmo tempo e com a mesma equipe.
Naquela noite, no conforto de meu lar, assisti ADRENALINA no meu velho videocassete. E é claro que era a típica produção pobretona fimada às pressas por Pyun para lançamento nas locadoras (embora tenha sido exibido nos cinemas em alguns países, inclusive no Brasil). Mas havia algo mais ali: pela primeira vez eu percebi como o clima do jogo Doom poderia ser adaptado para os cinemas.
Não, o roteiro de ADRENALINA não tem nada a ver com Doom: no jogo, você está numa estação espacial enfrentando criaturas vindas do inferno, enquanto no filme, que se passa num futuro hoje passado (2007), policiais caçam uma criatura monstruosa dentro das ruínas de um velho presídio.
Mas vendo aquelas andanças dos (poucos) personagens com lanternas e armas sempre em punho pelos corredores escuros do filme, eu comecei a sentir aquele mesmo clima de quando jogava Doom, igualmente perambulando por corredores escuros com arma em punho e à espera de que a qualquer momento um monstro horrível saltasse das sombras.
Talvez uma coisa não tenha nada a ver com a outra, e peço desculpas pela longa introdução, mas sempre que eu penso nele ou revejo ADRENALINA, é inevitável pensar também em Doom. E provavelmente não tenha sido essa sua intenção, talvez ele nunca tenha jogado Doom na vida, mas Pyun conseguiu chegar muito mais perto do clima do jogo do que aquele filme "oficial" pavoroso lançado quase 10 anos depois, "Doom - A Porta do Inferno", dirigido pelo péssimo Andrzej Bartkowiak!
Também escrito por Pyun, ADRENALINA foi filmado no Leste Europeu (externas na Croácia e na Bósnia, internas num estúdio da Eslováquia) para baratear custos, e realmente aparenta ter custado menos que um salário mínimo, já que a trama toda se desenrola nos corredores escuros de um prédio em ruínas - e, salvo uma pequena mudança aqui e ali, os atores parecem estar SEMPRE NO MESMO CORREDOR ESCURO!
Como todas as produções barateiras filmadas por aqueles lados, vários atores secundários e figurantes foram contratados por lá mesmo, conforme você percebe pela fisionomia e pelo forte sotaque do pessoal. Isso quando não foram visivelmente dublados. Porque os caras simplesmente não ambientaram a história no Leste Europeu para simplificar é algo que foge à minha compreensão.
Nossa história se passa no então futuro de 2007. Uma guerra química fez com que um vírus mortal se espalhasse pela Europa, mas isso nunca é satisfatoriamente explicado - só se sabe que a doença é mortal. Os europeus começaram a emigrar para os Estados Unidos em busca de salvação, e os norte-americanos foram obrigados a construir campos de quarentena que acabaram se transformando em cidades, e onde violentos conflitos explodem a todo momento. Ou, pelo menos, é o que nos conta a narração nos cinco minutos iniciais. Pode esquecer tudo a partir de então, pois já não faz mais diferença.
Estamos num desses campos de quarentena, em Boston, e Natasha Henstridge interpreta Delon, uma policial novata que está tentando tirar o filho pequeno (e doente) desse inferno e enviá-lo para a segurança da cidade descontaminada. Antes que isso aconteça, porém, ela é designada para uma "missão de rotina": investigar estranhos gritos vindos de um prédio em ruínas perto da zona de confronto.
Delon e seu parceiro Volker (Xavier Declie) vão até o edifício condenado, mergulhado na escuridão porque não há eletricidade, e encontram uma sala repleta de cadáveres mutilados. Volker é atacado por um tenebroso mutante que escapou do laboratório e está contaminado com um vírus ainda mais mortal. Delon escapa, mas não encontra mais a saída por aqueles corredores escuros. Desesperada, pede reforços pelo rádio.
É quando entra em ação o bambambam do departamento: o ultra-condecorado policial interpretado por Christopher Lambert, que, pelo menos que eu me lembre, nunca é chamado pelo nome, mas nos créditos finais é identificado como "Lemieux". Ele e os parceiros Cuzo (Norbert Weisser, ator habitual nos filmes de Pyun) e Wocek (Elizabeth Barondes) encontram Delon, mas, ao invés de todo mundo se mandar logo daquele prédio escuro e prestes a desmoronar, resolvem juntar forças para enfrentar o mutante. Claro que dá merda...
Pelo restante do filme, nossos quatro únicos protagonistas ficam zanzando pelos corredores com suas lanternas e armas em punho, à procura de um monstrengo que pode estar escondido em qualquer canto escuro, pronto para pular sobre eles.
Paralelamente, uma equipe militar comandada por Sterns (Andrew Divoff, o Djinn da série "Wishmaster") recebe a missão de localizar e matar o mesmo mutante, já que o vírus em sua corrente sanguínea irá atingir um nível crítico e o monstro pode contaminar o resto do mundo com uma praga mortal - ou algo do gênero. Sterns e seus homens, vestidos com roupas anti-contaminação amarelas e portando armas de grosso calibre, entram nas mesmas ruínas, mas o mutante revela-se um adversário muito mais perigoso do que parece.
ADRENALINA tem todos as qualidades e problemas de uma produção de baixíssimo orçamento. Entre os pontos positivos estão o roteiro enxuto e sem frescura; o filme nunca tenta ser mais do que é, e se limita a mostrar a caçada ao mutante e a subsequente transformação dos caçadores em caça pelo vilão.
Se o mesmíssimo roteiro fosse transformado numa grande produção de Hollywood, os caras certamente iam dar um jeito de tornar tudo mais complexo, aumentando o número de personagens para morrer, quintuplicando a ação e as explosões, os efeitos de maquiagem, e explicando tintim por tintim a origem do mutante, a sua fuga do laboratório até a prisão em ruínas, etc etc etc.
Trabalhando com merreca, e provavelmente um cronograma de filmagens bastante apertado, Pyun não podia se dar a esse luxo e fez o que dava. ADRENALINA é um filme barato, e isso está na tela. Para o bem ou para o mal.
Como todos sabemos, limitações orçamentárias geralmente obrigam os realizadores a usar a criatividade. Pyun não é exatamente o mais talentoso dos diretores, mas seu trabalho aqui é honesto e quase sempre eficiente. Ele mostra pouco o mutante para não entregar a maquiagem barata, e limita as cenas de ação porque não tem dinheiro para grandes efeitos. Mas volta-e-meia se sai com uns rompantes de inventividade que merecem elogios.
Uma das grandes cenas do filme acompanha o drama de dois dos policiais enquanto eles estão sob intenso fogo do mutante - que roubou a pistola de uma das suas vítimas. Em momento claramente inspirado na cena do sniper de "Nascido para Matar", de Stanley Kubrick, o vilão fica sadicamente atirando nas pernas e nos braços das suas vítimas, que não conseguem fugir dali porque levam um novo tiro a cada tentativa de levantar-se. É talvez o ponto alto de ADRENALINA, com a câmera "atingindo" os atores como se fosse as balas de revólver!
Outro belo trabalho de câmera é a cena inicial do filme, em que uma policial percorre o laboratório-hospital após a fuga do mutante. Trata-se de uma longa cena aparentemente sem cortes, em que a câmera assume o ponto de vista da policial enquanto ela percorre um corredor repleto de cadáveres e sangue. Certo, a câmera como ponto de vista do personagem não era exatamente novidade na época, mas é interessante como Pyun arquitetou uma longa e tensa cena em primeira pessoa numa aventura de baixo orçamento - um momento que, mais uma vez, remete aos jogos estilo Doom!
E há uma surpresa bem-vinda para quem esperava pura rotina: o herói interpretado por Lambert na verdade não é tão fodão quanto parece e se dá mal lá pela metade do filme, precisando da ajuda da novata Natasha para escapar vivo da fuzarca! Por isso, quem espera uma aventura com Lambert chutando traseiros pode se decepcionar.
Já a pobreza da produção torna a coisa toda mais divertida - embora o humor seja involuntário. Claro, é preciso fechar um olho para curtir o filme, porque está na cara que ele custou uma merreca (um espectador acostumado aos blockbusters de Hollywood não vai passar dos primeiros cinco minutos).
Os principais problemas de ADRENALINA decorrem da pobreza generalizada. Por exemplo, como engolir que a história se passa em Boston se os caras não tinham dinheiro sequer para mudar a inscrição "Policia" nas viaturas e nos coletes dos policias para "Police"? Não sei se "policia", sem acento, é croata ou espanhol, mas só iria funcionar se Pyun conseguisse nos convencer de que, no futuro, os imigrantes mexicanos dominaram os Estados Unidos!
Também chega a ser engraçado o fato de ninguém decidir sair daquele maldito prédio em ruínas e incendiá-lo ou explodi-lo para matar o mutante de uma vez. Não, eles preferem perder-se no labirinto de corredores escuros para virar alvo fácil do vilão. E o que dizer do "hospital de quarentena de segurança máxima" com janelas abertas e sem grades (foto abaixo), por onde os contaminados poderiam fugir a qualquer momento?
Por falar em furos de roteiro, a heroína interpretada por Natasha tem uma chance claríssima de matar o mutante logo no começo do filme, mas surta e deixa o vilão escapar. Sim, se ela tivesse atirado teríamos um curta ao invés de um longa-metragem, mas é o tipo de cena que poderia ter sido feita de outra forma. Até porque ficamos com a maior raiva da nossa protagonista pelo restante do filme, e o fato de ela ser novata não justifica a burrada!
Mas tudo bem, eu geralmente prefiro essas aventuras de fundo de quintal que vão direto ao assunto e divertem do que a maioria dos pretensiosos blockbusters que Hollywood produz hoje. E sim, prefiro rever um ADRENALINA do que um "Avatar". Porque, de alguma forma inexplicável, consigo aceitar um mutante mal-maquiado zanzando por um prédio em ruínas muito melhor do que Smurfs gigantes perambulando por um cenário feito por computador durante três intermináveis horas.
Uma curiosidade para fechar a resenha: ADRENALINA tem duas versões, como diversos filmes de Pyun. A versão lançada no Brasil em VHS e DVD é o corte norte-americano, que tem apenas 77 minutos (!!!) e é muito mais direto ao assunto: aquela longa cena inicial com a câmera percorrendo o hospital foi cortada e a trama já começa praticamente dentro do prédio em ruínas, onde várias cenas também foram diminuídas para agilizar a ação.
Na Europa, foi lançada uma versão mais longa, com 94 minutos, que tem mais "história" do que a anteriormente citada, incluindo um momento em que Delon encontra uma espécie de "toca" do vilão, com recordações de quando ele era humano, e uma conclusão significativamente diferente.
Embore eu goste de várias coisas dessa versão mais longa (como a já citada cena inicial em primeira pessoa), acho que uma história tão fraquinha quanto essa funciona melhor em 77 minutos e sem tanta enrolação. Em todo caso, recomendo ver as duas se você também é fã de aventuras de baixo ou nenhum orçamento.
E é uma pena que ninguém tenha pensado em Albert Pyun e ADRENALINA quando o projeto de levar Doom aos cinemas começou a ganhar corpo. Até porque Doom é o tipo de coisa que funcionaria muito melhor no universo do baixo orçamento - fico imaginando como seria uma adaptação produzida por Roger Corman, ou Charles Band.
Para encerrar, acho que ficou mais do que evidente, mas não custa reforçar: fique longe, muito longe desse filme se o seu ideal de diversão for algo muito diferente de ver Christopher Lambert e Natasha Henstridge perseguindo um mutante assassino num prédio em ruínas bósnio-croata num filme classe Z dirigido por Albert Pyun. Porque a coisa não vai muito além disso.
Aí o leitor do FILMES PARA DOIDOSpode querer questionar: "Mas Felipe, você realmente está dizendo que GOSTA de um filme em que dois ou três atores ficam caminhando por corredores escuros durante mais de uma hora?".
Aí eu respondo: um dos maiores classicos do cinema "cult-cabeça" de todos os tempos é exatamente isso, dois ou três atores caminhando por corredores escuros com medo de algo que pode ou não pular sobre eles a qualquer momento. Estou falando de "Stalker" (1979), do russo Andrey Tarkovskiy (um dos cineastas mais chatos da história).
A diferença é que no filme de Pyun os caras perambulam por corredores vazios durante uma hora, enquanto no do Tarkovskiy (muito mais respeitado, é claro, embora seja um porre!), a agonia dura quase três horas. E não tem nenhum mutante assassino esperando na escuridão para atacar os personagens. E nem o Christopher Lambert. E nem a Natasha Henstridge.
Na boa? Fico com o filme do Pyun!
PS 1: O dublê Craig Davis interpretou o mutante assassino. Logo depois, ele foi para Hollywood e começou a trabalhar nas equipes de dublês de vários filmes de super-heróis: "Batman & Robin", a trilogia "Homem-Aranha" de Sam Raimi, "Hellboy" e "Capitão América: O Primeiro Vingador", entre outros blockbusters. Nada mal para quem começou sua carreira como vilão de um filme furreca filmado no Leste Europeu...
PS 2:Não há nenhuma explicação plausível para a palavra em inglês "Adrenaline" ter sido escrita errada no título original (sem o "E"), mas vá saber o que se passa na cabeça de Albert Pyun...
Trailer de ADRENALINA
******************************************************* Adrenalin: Fear the Rush (1996, EUA) Direção: Albert Pyun Elenco: Christopher Lambert, Natasha Henstridge, Norbert Weisser, Elizabeth Barondes, Xavier Declie, Craig Davis, Nicholas Guest e Andrew Divoff.
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