INFERNO NO HARLEM (1973)
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INFERNO NO HARLEM (1973)



Larry Cohen é um dos mais celebrados (e com razão) diretores da "cena B" do cinema norte-americano. Não bastasse ter dirigido alguns clássicos de baixo orçamento, como "Nasce um Monstro", "A Coisa" e "Q - The Winged Serpent", o homem também é um roteirista de primeira (o célebre personagem Maniac Cop, da trilogia dirigida por William Lustig, é criação dele).

O que pouca gente lembra, ou sabe, é que Cohen mirava um outro público antes de envolver-se com o cinema fantástico: ele começou sua carreira escrevendo, produzindo e dirigindo filmes do ciclo blaxploitation, aquelas produções estreladas por negros e destinadas ao público negro, que na primeira metade dos anos 70 davam um dinheirão (e eram politicamente incorretas até a medula).


É até irônico que um "branquelo" como Larry Cohen esteja por trás de alguns dos filmes mais bem-sucedidos do período. Mas ele já estreou no cinema com uma produção black, "Bone" (1972), estrelada por Yaphet Kotto.

E seu primeiro sucesso, igualmente um blaxploitation, veio já no ano seguinte: "O Chefão de Nova Iorque", aka "Black Ceaser", estrelado por um jovem Fred Williamson (o filme foi relançado em DVD recentemente com o estúpido título "O Chefão do Gueto").

Uma versão mais escurinha dos filmes de gângster dos anos 30 - como o "Scarface" de Howard Hawks e principalmente "Alma no Lodo", de Mervyn LeRoy (cujo título original, "Little Ceaser", é citado de forma escancarada) -, "O Chefão de Nova Iorque" deu tanta grana que Samuel Z. Arkoff, o cabeça da American International Pictures (AIP) e produtor do filme, praticamente OBRIGOU Cohen a fazer uma sequência meses depois.


Resumidamente, foi assim a gênese de INFERNO NO HARLEM, uma obra barata, feita às pressas com o único objetivo de ganhar dinheiro, e cujo resultado o próprio diretor-roteirista hoje renega, alegando que não é dos seus trabalhos mais inspirados.

Mas, nesses tempos de Zack Snyder e Michael Bay, até mesmo um Larry Cohen fraco sai-se melhor que a média.

No caso de INFERNO NO HARLEM, a surpresa pode ser positiva caso você assista com o devido clima: sim, o filme é ruim, mas é MUITO DIVERTIDO em todas as suas falhas e problemas. Praticamente uma comédia involuntária, daquelas para reunir a turma na sala e ficar 1h30min dando gargalhada.


Para quem não lembra, ou não viu, "O Chefão de Nova Iorque" narrava a ascenção e queda de Tommy Gibbs (Williamson), um marginal fanfarrão (e negro, óbvio) que sobe na vida bandida eliminando os chefões de outras máfias, até virar o grande rei do crime no Harlem. Bandidão do bem, ele não se mete em negócios "sujos", como drogas, e inclusive ajuda a varrer os traficantes do bairro.

Porém, como aconteceu a Scarface e Little Ceaser antes, quando a subida é muito rápida, o tombo também vem rápido. Assim, o primeiro filme terminava com Gibbs sendo traído numa manobra dos seus adversários.


Andando por um beco, sozinho e na sarjeta, o ex-chefão era atacado, espancado e deixado para morrer por um grupo de novos marginais e candidatos a futuros reis do crime (uma ideia que seria reaproveitada, décadas depois, no final do nosso "Cidade de Deus").

Como não era possível continuar a história de Tommy Gibbs depois disso, o início de INFERNO NO HARLEM simplesmente descarta e reescreve a conclusão de "O Chefão de Nova Iorque" - numa daquelas típicas táticas desesperadas e questionáveis adotadas por produtores ávidos por grana fácil.


Agora, Gibbs não é mais espancado até a morte por marginais no beco, mas sim sobrevive a um atentado realizado por seus inimigos. E, ferido por um tiro no peito, é levado ao hospital por alguns homens de confiança. É a partir dali que se desenrola a história dessa sequência.

Depois de recuperar-se do atentado, Gibbs resolve retomar o controle do crime no Harlem e vingar-se de todos os seus inimigos, inclusive a ex-esposa Helen (Gloria Hendry), que ajudou no planejamento do atentado da cena inicial.

Quase todos os personagens de "O Chefão de Nova Iorque" estão de volta nessa nova "aventura": Tommy Gibbs, sua ex-esposa, o reverendo (e ex-matador) Rufus (interpretado por D'Urville Martin) e o pai do protagonista, Papa Gibbs (Julius Harris, mais conhecido como o vilão com garra metálica de "Com 007 Viva e Deixe Morrer", filmado no mesmo ano de 1973).


Já os desafetos do "Black Ceasar" são novinhos em folha, até porque ele tinha liquidado quase todos os seus inimigos no final de "O Chefão de Nova Iorque".

Um deles é Zach, um membro da sua própria gangue que vira a casaca (interpretado por Tony King, posteriormente visto em filmes italianos como "The Last Hunter" e "Os Caçadores de Atlântida").

O outro é o ardiloso e corrupto promotor DiAngelo (Gerald Gordon), esse um branquelo, óbvio. Foi DiAngelo o verdadeiro responsável por arquitetar o atentado contra Gibbs no início do filme, para ver-se livre do bandidão e poder ele mesmo controlar o crime em Nova York.


INFERNO NO HARLEM não esconde em momento algum o fato de ser uma produção feita na corrida para aproveitar a bilheteria do original.

Cohen confessadamente rodou o filme sem o menor empenho, enquanto filmava, simultaneamente, um dos seus grandes clássicos, "Nasce um Monstro", que foi lançado no ano seguinte (1974).

O esquema de trabalho do cineasta era absurdo: ele gravava cenas de "Nasce um Monstro" de segunda a sexta-feira, e deixava o final de semana para filmar INFERNO NO HARLEM!


Para piorar, o astro Fred Williamson não estava disponível em tempo integral, pois, com o sucesso de "O Chefão de Nova Iorque", foi contratado para estrelar "That Man Bolt", de Henry Levin e David Lowell Rich.

O problema: as filmagens de "That Man Bolt" e INFERNO NO HARLEM aconteceram NO MESMO PERÍODO, só que um filme estava sendo rodado em Los Angeles e o outro no Harlem, em Nova York!

Qualquer outro produtor menos insano teria adiado INFERNO NO HARLEM em alguns meses até Williamson estar finalmente disponível, mas Cohen e sua turma não queriam deixar o interesse pelo original esfriar.


Assim, como só podia dispor do seu astro quando ele tinha tempo livre nas filmagens do outro trabalho, o diretor usou um dublê parecido com Williamson (!!!), e rodou com este dublê a maior parte das cenas em que o personagem aparece de costas ou de longe, numa picaretagem das mais safadas!

Por sua vez, os closes do ator "verdadeiro" foram todos filmados em Los Angeles, nos intervalos da filmagem de "That Man Bolt", e depois editados com as cenas do dublê. Desnecessáro dizer que a "solução" nem sempre funciona...

Tudo isso ajuda a criar uma certa "aura de culto trash" em torno de INFERNO NO HARLEM. Afinal, a produção é tão problemática, e foi feita tão "nas coxas", que só por isso já vale uma olhada, nem que seja para tentar identificar todas as cenas em que Fred Williamson é substituído pelo dublê - que, segundo o próprio ator, não se parecia nadinha com ele, à la dublê de Bela Lugosi em "Plan 9 From Outer Space"!


Mas não fica só nisso: o filme todo é desleixado, mal-filmado e mal-editado, um verdadeiro caos. Por exemplo, se tirarmos todas as cenas que apenas mostram os personagens caminhando de um ponto a outro para matar tempo, a duração da obra baixaria de 94 minutos para 50, no mínimo.

E nada pode ser mais porco que o ataque da gangue de Gibbs a um grupo de traficantes de drogas orientais. Talvez a idéia fosse aproveitar a febre dos filmes de artes marciais no Ocidente, mas não colou: a cena é filmada com a câmera sacudindo, mais que num filme do Michael Bay, provavelmente para que o espectador não possa perceber como é tosca e pobre a coreografia das "lutas" entre os bandidos.


Continuando nesse ritmo trash, é impossível não citar a cena ABSURDA em que Gibbs persegue o traidor Zach até o aeroporto, mas seu inimigo consegue entrar no avião e fugir para Los Angeles. Quando o protagonista chega no aeroporto, o avião com seu rival já decolou. Tranquilamente, Gibbs compra uma passagem para o próximo vôo, entra no seu avião, decola, enfrenta um inimigo no interior da aeronave, pousa e, MIRACULOSAMENTE, encontra o homem que estava perseguindo chegando no mesmo aeroporto naquela mesma hora, apesar do vôo do sujeito ter decolado pelo menos meia hora antes que o dele! E você que achava que só no Brasil o serviço das companhias aéreas atrasava tanto, né?

Apesar de todas essas baboseiras, que geram sonoras gargalhadas involuntárias, INFERNO NO HARLEM também tem algumas ótimas qualidades. O nível de violência, por exemplo, está no mesmo patamar do original, com sangrentos tiroteios em que ainda se usa aquele sangue bem vermelhão, tipo o dos filmes de Dario Argento.

Além disso, mesmo numa produção inegavelmente tosca e ruim como esta, Cohen consegue espalhar uma série de pequenos momentos que são absolutamente geniais, e que hoje fariam surtar esse pessoal que policia o politicamente correto no cinema.


Um deles é o ataque da gangue de Gibbs a um grupo de mafiosos (brancos) que se diverte numa mansão à beira-mar. No meio do tiroteio dos diabos, até a empregada dos branquelos, vestida com sua tradicional roupinha de doméstica, pega um trabuco para passar chumbo nos patrões, e com um sorriso escancarado nos lábios!

Nessa mesma cena, Tommy é surpreendido pelas habilidades em artes marciais de uma insuspeita garota de biquíni (!!!). Após cair no chão, atordoado pelos chutes que levou da garota, nosso protagonista simplesmente levanta e, sem um pingo de sutileza, esquece o ditado "Em mulher não se bate nem com pétala de rosa" e dá uma voadora na fuça da gostosa karateka, que vai a nocaute instantaneamente!


E o público negro deve ter vibrado na cena em que o personagem de Williamson recebe voz de prisão de dois policiais (brancos). A reação do rei do crime é encher ambos de sopapos até caírem na calçada. Depois, gentilmente ajuda os policiais a levantar e "se rende" para ser levado à delegacia!

Na conclusão, Gibbs também despacha seu inimigo DiAngelo em grande estilo. (SPOILER) Numa espécie de vingança contra os linchamentos promovidos pela Ku Klux Klan, o protagonista enforca seu rival numa árvore enquanto grita: "Vou te tornar famoso, DiAngelo. Você vai ser o primeiro branco a ser enforcado por um negro!". (FIM DO SPOILER)

O próprio Cohen se arrependeria da cena posteriormente: na faixa de comentário que acompanha o DVD gringo, ele diz que até o público negro ficou indiferente, meio chocado, nas salas de cinema, ao invés de vibrar com o "linchamento ao contrário".


INFERNO NO HARLEM vale por esses momentos preciosos e pelos inúmeros problemas de uma produção apressada (e que não tenta esconder isso em momento algum). É praticamente uma aula de cinema improvisado e de como um diretor pode usar muita criatividade (e cara-de-pau) para contornar as maiores dificuldades, como a ausência do seu ator principal.

E não foge à regra da maioria dos filmes blaxploitation daquela época áurea: hoje, nesses tempos cheios de frescuras e "não-me-toques", obras sem medo de ousar e de ir longe demais, como esse INFERNO NO HARLEM, são uma verdadeira curtição.

No ano seguinte (1974), o sucesso de crítica e público de "Nasce um Monstro" pôs Cohen em outro caminho (o cinema fantástico), onde ele se mostraria igualmente talentoso.


Porém, fiel às origens, o diretor sempre deu um jeitinho de homenagear suas raízes blaxploitation ao colocar ícones da época, como Richard Roundtree (o próprio Shaft!), em seus filmes posteriores.

Finalmente, em 1996, o diretor tentou homenagear o ciclo blaxploitation com "Original Gangstas / Hot City", no Brasil rebatizado "Justiceiros de Rua". O filme foi um fracasso, mas é uma rara oportunidade de rever astros e estrelas do ciclo (envelhecidos, claro), como Fred Williamson, Jim Brown, Pam Grier e Richard Roundtree.

PS: Quem achou super-hiper-mega-ultra criativo o padre assassino de Cheech Marin em "Machete" talvez se decepcione ao saber que INFERNO NO HARLEM tem um personagem idêntico. Tudo bem, Robert Rodriguez, você está apenas 37 anos atrasado...

Trailer de INFERNO NO HARLEM



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Inferno no Harlem (Hell Up in
Harlem, 1973, EUA)

Direção: Larry Cohen
Elenco: Fred Williamson, Julius Harris, Gloria
Hendry, Margaret Avery, D'Urville Martin, Tony
King, Gerald Gordon e James Dixon.



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