A problemática da marginalidade no cinema brasileiro - quando situada historicamente por volta de 1970 - tem, a meu ver, a singularidade de não conter em seu horizonte o discurso, extremamente reincidente no começo da década, em torno da necessidade efetiva de uma intervenção da obra na realidade concreta de maneira a transformá-la. "Quando a gente não pode fazer nada a gente avacalha e se esculhamba", essa conhecida frase, pronunciada em O BANDIDO DA LUZ VERMELHA[longa de estréia de Rogério Sganzerla, SP, 1968] dá, a meu ver, a dimensão exata das transformações sofridas pela ideologia estabelecida em torno da necessária inserção da obra no social durante o transcorrer da década. Primeiro, uma constatação crua: "a gente não pode fazer nada"; a seguir, a atitude que se segue ao fato consumado: o avacalho e o esculhambo; ou seja, na medida em que eu posso avacalhar, não tenho nenhum vínculo com atitudes construtivas... (RAMOS, 1990, p. 28-29)
De maneira muito resumida, pode-se dizer que os cineastas marginais trilharam dois caminhos diferentes após o bombástico sucesso obtido em 1968 com O BANDIDO DA LUZ VERMELHA, de Rogério Sganzerla, realizado na Boca do Lixo, com base na história de um personagem real bastante conhecido das crônicas policiais: o grupo paulista (João Callegaro, Carlos Reichembach e outros), defendendo o que chamavam de “cinema cafajeste”, ligou-se a produtores da Boca do Lixo e, produzindo filmes com forte apelo erótico, manteve-se mais ou menos próximo do mercado exibidor. Já cariocas como Júlio Bressane e o próprio Sganzerla (que chegaram a fundar uma produtora, a BELAIR) e Elyseu Visconti parecem ter-se afastado progressivamente do público, fato agravado pelo exílio de alguns e pela censura nos anos 1970.
Dentro do projeto estético desse cinema, o elemento que interessa particularmente a esta pesquisa é o gosto pela representação do sentimento de horror, que, para Fernão Ramos (1987), tem relação direta com o clima de pânico instalado no país entre aqueles que tinham consciência da prática da tortura nos porões do Regime Militar. A presença constante do medo e da repressão assombraria mesmo o aspecto da “curtição” e do “desbundamento” tão caros ao cinema marginal:
Tudo se passa como se, estando o campo aberto para o usufruto do prazer, alguma força imprimisse dentro deste (talvez excessivamente aberto) a dimensão do horror e da abjeção que, como extremos, parecem coincidir. Talvez isso se deva ao fato de que, dentro da ideologia da contracultura, característica do início dos anos 70, a conjuntura política particular do Brasil parece ter acrescentado um novo fator, condizente com nossa realidade: o terror. Todo o discurso em torno da experimentação e do prazer se choca com um universo de repressão à individualidade extremamente brutal. (RAMOS, 1990, p. 36)
A atração dos “marginais” pelo trabalho de José Mojica Marins era mais um fator de aproximação com o cinema de horror. Neste sentido, Jairo Ferreira, jornalista e cineasta pertencente a esse circuito, apontaria os motivos do interesse dele e de seus companheiros pelo trabalho do cineasta do Brás: “Cada fotograma filmado por Mojica respira cinema e somente cinema. Tudo é inseguro, pode explodir a qualquer instante, a exasperação domina. Ele ameaça as relações normais entre os atores, entre a câmera e o décor, o diálogo e a realidade.” (FERREIRA, 2000, p. 98).
Como observa Fernão Ramos:
Nos filmes de Mojica, o que atrai os marginais é a figuração do grotesco e do disforme (...). Além do esquema de produção rápido e eficiente, seus filmes primam pelo primarismo da linguagem, próximos do estilo “óbvio” elogiado pelos marginais. Este estilo óbvio é, no caso, um certo primitivismo que se respira em Mojica, tanto em relação à direção dos atores, como à decupagem (...). Além disso, as imagens de horror (e não tanto do terror) não poderiam deixar de causar admiração ao udigrudi. Aranhas peludas sobre peles brancas, cobras, sangue, infernos dantescos, torturas ignóbeis, berros horripilantes, são elementos que, anos mais tarde, seriam retomados pelo udigrudi, já sem a inocência e o moralismo que se respira em Mojica. (RAMOS, 1988, p. 385-386).
Mas, se o que mais interessou aos marginais nos filmes de Mojica foi o modo de produção assumidamente precário e a representação exasperada do sentimento de horror (e não propriamente do horror-artístico), não há dúvida de que alguns plots de filmes marginais eram calcados nos temas que tanto inspiraram o criador de Zé do Caixão.
A referência aos temas e mesmo a alguns clichês do horror-artístico não redundou em filmes do gênero horror, mas em obras que se apropriaram, de maneira lúdica, de alguns clichês horroríficos bastante conhecidos, variando desde versões bastante herméticas até filmes que se aproximaram um pouco mais da comédia popular (como as obras de Ivan Cardoso, obviamente herdeiras do projeto do cinema marginal).
Entre os filmes marginais que fazem alguma referência ao universo do horror, destacam-se, por motivos diferentes, A POSSUÍDA DOS MIL DEMÔNIOS (Carlos Frederico, 1970), PRATA PALOMARES (André Faria Jr., 1971), MEMÓRIAS DE UM ESTRANGULADOR DE LOIRAS (Júlio Bressane, 1971), COPACABANA MON AMOUR (Rogério Sganzerla, 1970/5) e LOBISOMEM – O TERROR DA MEIA NOITE (Eliseu Visconti, 1972-1974), entre outros.
Antes de LOBISOMEM, Visconti também dirigira MOSTROS DO BABALOO (1974), estrelado por Helena Ignez, uma comédia grotesca que dialogava com o horror apenas no título. Este filme esteve na programação de uma curiosa “mostra” organizada pelos cineastas marginais no Festival de Brasília de 1978, intitulada “O Horror no Cinema Brasileiro”, e que reuniu os filmes MONSTROS DO BABALOO, DELÍRIOS DE UM ANORMAL (de Mojica) e SEM ESSA ARANHA, de Rogerio Sganzerla.
Curiosamente, os filmes marginais que pareciam ter um diálogo mais evidente com o horror ficaram de fora, o que sugere que o conceito de “horror” dos cineastas marginais estava longe de ser o mesmo adotado hoje.
Mas, voltando ao filme de Visconti: assim como em MONSTROS DO BABALOO, não se trata de um filme de horror: o nosso "lobisomem", interpretado por Wilson Grey (no seu verdadeiro primeiro papel como protagonista), é um sedutor da contracultura, um símbolo da transgressão defendida pelo cinema marginal, mas não um monstro comedor de gente. Ele é um cara misterioso que anda pelo mato buscando mulheres para seduzir ao som do rock'n'roll e de marchinhas de carnaval.
Por outro lado, o Satanás de Paulo Villaça (figura importantíssima para o cinema marginal), que surge "do nada" lá pela metade do filme, também é representado como um beatnik, um estradeiro que vai parar numa caverna onde vive uma trip maluca com estalagmites. Nesse sentido, ele parece ser também um típico representante do desbundamento tão característico do cinema marginal.
É uma pena não ter imagens do filme para ajudar nestes breves comentários, pois, como todos os outros filmes marginais, trata-se de uma obra muito difícil de descrever. O seu ponto mais forte, parece-me, é a trilha musical, com Jethro Tull, Jimmy Hendrix, Traffic, Cream, John Lennon, além de incontáveis marchinhas de Carnaval, cujos títulos (infelizmente) não identifiquei.
Enfim, fica a dica para quem tiver a oportunidade de ver o filme: não vá esperando um filme de Lobisomem, mas entregue-se sem medo à experiência única do cinema marginal brasileiro.