O anjo da noite
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O anjo da noite



Como muito bem já observou o pesquisador Renato Luis Pucci Jr, a idéia corrente de que o cineasta Walter Hugo Khouri se repetia em seus filmes diz respeito a uma impressão, por vezes superficial, que se tem de uma parte de seu trabalho, voltada aos dramas pessoais do recorrente personagem Marcelo. Como mostra Pucci Jr., há uma parte menos conhecida da cinematografia de Khouri que se afasta dos dramas de seu famoso “alter-ego” e trilha outros caminhos – às vezes notadamente femininos, como se pode perceber em suas duas fitas de horror.

A primeira delas, O ANJO DA NOITE, foi produzida em 1974, pelo paulista Antonio Pólo Galante e os cariocas Gilberto Brocchi e Luis de Miranda Correia, e filmada no Rio de Janeiro, na cidade serrana de Petrópolis. Inspirada numa lenda urbana importada dos EUA, a fita, estrelada por Selma Egrei, contava a história de Ana, jovem estudante contratada como babá de duas crianças que vivem com a família em uma mansão no meio de um imenso vale. Deixada sozinha com o menino e a menina, e também com o vigia (interpretado por Eliezer Gomes), a babá começa a receber insistentes telefonemas mudos durante a noite, entrando numa espiral de pânico com conseqüências trágicas: os telefonemas são dados pelo próprio vigia, que, num acesso de loucura, mata a todos.

Quando apresentado apenas em seu plot resumido, o filme pode parecer bastante simples em sua narrativa. Mas, bem à maneira de Khouri, O ANJO DA NOITE foge às interpretações simples, sugerindo algumas ambigüidades que contribuem para a atmosfera de mistério e de estranhamento. Por exemplo, o interior da casa onde moram as crianças assemelha-se muito ao de um esquife, o que leva a própria Ana a deitar-se no meio da sala, imaginado-se morta, antes dos telefonemas começarem.

Com isso, o poder mortal da casa fica sugerido, num reconhecimento das matrizes góticas, com suas casas malditas. Também o personagem do menino Marcelinho, claramente apaixonado pela babá, é suspeito de fazer as ligações, recusando-se a dormir ao longo de toda a madrugada, e contribuindo para a perturbação de Ana. Com a presença de Marcelinho, a relação entre o assassino a os telefonemas se torna menos segura e, mais uma vez, o ambiente da casa é que parece sugerir a violência.

Entretanto, é na figura do vigia que o filme apresenta sua principal ambigüidade: no começo da história, este é apresentado como um homem extremamente simpático e servil, mas, ao longo da noite, vai se tornando, num processo muito sutil, cada vez mais ousado e monstruoso, o que culmina no surto de violência que sofre ao amanhecer.

Embora este não pareça ser o principal objetivo de Khouri, é possível dar uma interpretação política e racial ao acontecimento narrado, pois o vigia, que é o único personagem negro, parece sentir-se dominado e amedrontado por forças ancestrais que exalam da casa – uma mansão no meio da cidade mais aristocrática do Brasil. Nesse sentido, ao tematizar a latência de conflitos passados concentrados numa casa rica e vazia em meio à natureza selvagem, O ANJO DA NOITE faz uma operação bastante comum nas histórias de horror clássicas, derivadas da ficção gótica: relacionar a monstruosidade ao que é, literalmente, estrangeiro e fisicamente diferente de um ambiente bem delimitado (no caso, o próprio ambiente da casa e de seus moradores).

Evidentemente, não se quer, aqui, tratar o filme de Khouri como parábola ou alegoria da questão racial no Brasil. O que se quer, apenas, é apontar a aparente consciência de seu roteirista/diretor em relação a essas possibilidades simbólicas das histórias de horror – as quais ele conhecia bastante bem, conforme afirmou em diversas entrevistas ao longo de sua vida, como a que reproduzo abaixo:

Khouri - O meu fascínio pelo clima fantástico, pelo irreal e pelo insólito vem desde as minhas leituras de infância e continuou pela adolescência e pela idade adulta, aí já abrangendo todos os domínios da arte literatura, artes plásticas em geral e, naturalmente, cinema. Desde muito cedo me familiarizei e me apaixonei também por autores como Edgar Allan Poe, Henry James, ... Sheridan Le Fanú e também Lovecraft, além de uma infinidade de outros. (In: FERREIRA, FSP, 05/03/1979)

Esse conhecimento declarado de Khouri a respeito das histórias clássicas de horror também pode levar a uma outra suposição – neste caso, relativa à inspiração literária direta para o filme. Afinal, a presença das duas crianças e da babá ameaçadas por empregados numa casa isolada já fôra o mote de um clássico da literatura de horror do século XIX: A Outra Volta do Parafuso, do escritor inglês (citado por Khouri) Henry James (1843-1916), e levado ao cinema por Jack Clayton, em OS INOCENTES (1961).
A presença dos telefonemas misteriosos também nos remete a histórias mais modernas, como o primeiro episódio de AS TRÊS MÁSCARAS DO TERROR (1963), IL TELEFONO, de Mario Bava, no qual uma bela mulher (Michele Mercier) começa a receber telefonemas ameaçadores ao longo da noite de pavor.

Por aproveitar-se das normas do gênero de forma tão autoconsciente, e por relacionar-se com obras de horror de diferentes épocas e estilos, O ANJO DA NOITE pode ser considerado um dos filmes mais sofisticados desse gênero já realizados no Brasil. Mesmo assim, não fez sucesso significativo nas bilheterias – ou, pelo menos, nada consta a este respeito.

Em compensação, obteve reconhecimento em pelo menos dois festivais importantes pelos quais passou: o Festival Internacional de Cinema Fantástico de Sitges, em 1974, na Espanha, que lhe concedeu a Menção Especial do Júri; o II Festival do Cinema Brasileiro de Gramado, em 1975, que o premiou com os “kikitos” de Melhor Direção para Khouri, de Melhor Direção de Fotografia para Antonio Meliande e de Melhor Ator para Eliezer Gomes.

Ficha técnica completa da Cinemateca Brasileira do filme O ANJO DA NOITE (1974), de Walter Hugo Khouri.



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