O Livro de Eli... e do ódio
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O Livro de Eli... e do ódio



E lá se vão 10 anos desde que eu escrevi sobre o irregular "Constantine" (2005), de Francis Lawrence, lamentando o fato de que o filme seria incompreendido: um roteiro inteligentíssimo - sofisticado até - perdido numa embalagem chinfrim de blockbuster descerebrado, e que acabou não agradando nem quem foi ao cinema pela história, nem quem só queria ver os efeitos em CGI e o Keanu Reeves explodindo demônios.

Agora, a história se repete com O LIVRO DE ELI, dirigido pelos irmãos Albert e Allen Hughes, e atualmente em cartaz nos cinemas brasileiros. O trailer dá uma idéia errada de que este é apenas mais um filme pós-apocalíptico com ação ininterrupta, mas não há ação suficiente para quem busca apenas isso; por outro lado, há idéias fantásticas e originais no roteiro de Gary Whitta, mas nem sempre utilizadas como deveriam.

O resultado é um filme híbrido e que também vem sendo incompreendido, como "Constantine" foi cinco anos atrás. Por exemplo, entre as muitas bobagens que li sobre a obra pela internet afora, estão comentários taxando o filme de passar uma mensagem cristã e de ser uma "história evangélica". E chamo isso de bobagens porque a mensagem passada pelo filme é justamente O CONTRÁRIO DISSO.


A trama do filme se passa num mundo devastado e desértico, 30 anos após uma misteriosa guerra que devastou o planeta (e sobre a qual não são dadas maiores informações, nem mesmo com um letreiro inicial, algo muito bem-vindo nestes tempos de "quero tudo bem explicadinho").

Um andarilho solitário chamado Eli, e interpretado por Denzel Washington, vaga rumo ao Oeste carregando na sua mochila o que pode ser o último exemplar existente da Bíblia Sagrada, já que todos os livros foram queimados depois da guerra (mais sobre isso em seguida). Enquanto lê e recita os salmos bíblicos, nosso "herói" vive de amputar membros e matar violentamente os inúmeros criminosos pós-apocalípticos que encontra pelo caminho.

Finalmente, Eli chega a uma cidadezinha - o mais próximo de um núcleo civilizado em quilômetros. O lugar é controlado por Carnegie (Gary Oldman, uma boa surpresa), vilão cuja missão de vida é justamente encontrar um exemplar da Bíblia para poder "dominar" mais facilmente os sobreviventes do apocalipse. Ao descobrir que Eli carrega o livro, Carnegie faz tudo para tomá-lo, dando início a uma caçada humana pelo mundo devastado.

Bem, não sei o que viram de mensagem cristã ou história evangélica num filme sobre um anti-herói errante que viaja pelo que restou do mundo lendo e recitando a Bíblia, cujas passagens já sabe de cor, mas ao mesmo tempo matando brutalmente quem quer que se coloque em seu caminho. Se esse é o ideal de um "herói católico", então podemos fazer uma analogia do Eli de Denzel Washington com vários outros homens que tomaram a "palavra de Deus" (ou de Alá, ou de qualquer outra divindade) como desculpa para a violência durante a história da humanidade - dos Cavaleiros Cruzados aos Inquisidores, dos homens-bomba muçulmanos aos sacrifícios humanos.


Aliás, a idéia pareceu familiar? E é! Até achei engraçado o fato de a nossa "imprensa especializada" estar muito ocupada comparando O LIVRO DE ELI com "Mad Max" e "Eu Sou a Lenda" (hã?!?) para esquecer que a principal fonte de inspiração do filme é a graphic novel "Apenas um Peregrino", de Garth Ennis e Carlos Ezquerra. Os quadrinhos contam a história de um peregrino errante num mundo pós-apocalíptico (devastado pela explosão do Sol), que intercala passagens da Bíblia e orações com a matança desenfreada dos "infiéis" - além de usar "inocentes" na sua Guerra Santa e descartá-los assim que não têm mais utilidade.

Pois há muito do Peregrino no Eli de Denzel Washington. Ambos perseguem cegamente suas próprias "missões religiosas", podendo ser facilmente comparados a fanáticos ou extremistas religiosos. No filme, nunca fica bem claro o objetivo de Eli ao preservar com tanta obstinação o livro sagrado, e é isso que o torna um anti-herói tão dúbio - nos quadrinhos, o Peregrino era um psicopata canibal arrependido e que "encontrou Jesus", mas não entendeu muito bem a sua mensagem. Eli também não, pelo jeito: tanto ele quanto o Peregrino são representados como egoístas que matam e deixam pessoas inocentes para morrer nas mãos dos bandidos. São, portanto, heróis imperfeitos e cheios de problemas morais, verdadeiros anti-heróis que não passam uma bela imagem de "soldados de Cristo", como certos cinéfilos carolas vêm propagando por aí...

O roteiro de O LIVRO DE ELI também é bem claro no juízo que faz do livro sagrado transportado por seu Mad Max negro: como diz o vilão Carnegie, "não é a porra de um livro, é uma ARMA!". E não o é até hoje? Conforme uma célebre frase cujo autor me escapa, "nenhum reino teve tantas guerras quanto o Reino de Deus". Dos primórdios da humanidade até o universo do filme dos irmãos Hughes, a religião (aqui na forma da última Bíblia existente) é a desculpa adotada por heróis e vilões para justificar a matança dos rivais.


Mensagem cristã ou evangélica? Pelo contrário: acho que fica muito claro, até a (surpreendente) revelação final de O LIVRO DE ELI, que o tom do roteiro não é "pró-religião", mas sim anti-religião. Aliás, o filme é radical ao mostrar que heróis e vilões estão se matando por uma Bíblia (no fundo, um livro!), num mundo em que ninguém sabe ler e em que há outras preocupações muito maiores do que "evangelizar" os sobreviventes. Até mesmo os capangas iletrados de Carnegie questionam a importância do livro para provocar tantas mortes.

Quando o roteiro revela que todas as bíblias foram queimadas, junto com outros livros, depois da misteriosa guerra que destruiu o mundo, é só ligar os pontos para chegar à conclusão que o conflito apocalíptico foi uma Jihad, uma Guerra Santa, cujo dramático resultado fez com que os sobreviventes se voltassem contra as religiões, queimando seus livros sagrados para que a "palavra" se perdesse e a história não se repetisse.

Ao preservar o último exemplar de uma Bíblia, Eli pode não ser exatamente um valoroso herói, mas justamente o homem que recolocará a humanidade na sua trajetória de destruição provocada pelo extremismo religioso. Não que o mundo apocalíptico sem religião seja melhor (o filme deixa bem claro que não é, com seus bandidos canibais e saqueadores nas estradas à la "Mad Max"), apenas não parece haver mais lugar para Deus, Alá, Buda ou quem quer que seja naquele universo pleno de outras prioridades.


Por sua vez, Carnegie conhece bem o poder da evangelização, de disseminar o medo entre seus comandados - os desesperançados sobreviventes do apocalipse -, fazendo-os acreditar numa força superior para que fiquem "sob controle". O roteiro também explica que pouquíssimos sobreviventes ainda sabem ler (Eli e Carnegie são duas das exceções), remetendo à Idade Média, quando quem detinha o poder sobre os livros (logo, sobre o conhecimento) era a Igreja.

Eu, pessoalmente, acredito que a religião é a raiz de todo o Mal, e isso também está nas entrelinhas de O LIVRO DE ELI. Com a Bíblia em seu poder, Carnegie poderia usar a "palavra de Deus" para dominar seus súditos a exemplo do que fazem hoje muitos sacerdotes e pastores evangélicos. Por isso o irônico comentário "não é um livro, é uma arma". Uma arma que vem sendo usada desde a aurora dos tempos, e é eficiente o bastante para fazer com que seres humanos explodam bombas no próprio corpo sonhando com um Paraíso repleto de virgens!

Ainda é possível fazer uma relação entre o vilão Carnegie e um certo ex-presidente norte-americano chamado George W. Bush, que usava Deus como desculpa para tudo, inclusive para bombardear o Iraque! Não que seja exclusividade dele, a julgar as atrocidades cometidas em nome de Alá e a eterna guerra entre palestinos e judeus.


Enfim, o que O LIVRO DE ELI procura deixar bem claro é que a Bíblia, por mais que represente a "palavra de Deus", foi escrita pelo HOMEM. E baseado nela, o próprio homem é capaz de cometer os piores atos de injustiça e violência, seja herói ou vilão, dependendo da forma como manipula/interpreta a sua mensagem. O filme usa a Bíblia, mas em seu lugar podia ser o Alcorão, a Torá ou qualquer outro texto sagrado tomado como "verdade absoluta e inquestionável" pelos seus seguidores, que a mensagem será a mesma.

Confesso que fiquei até imaginando, no final: SPOILER Será que Eli ditou uma versão decorada e integral da Bíblia ou inventou a sua própria (como também podem ter feito os monges copistas que registraram as primeiras Bíblias)? Afinal, os "fiéis" iriam segui-la do mesmo jeito, como fazem até hoje inspirados pelos evangelhos escritos por pessoas mortas há dois mil anos! FIM DO SPOILER

Descontando todo este aspecto religioso, O LIVRO DE ELI também é tecnicamente atrativo pela fotografia acinzentada, quase monocromática, que transporta o espectador àquele mundo destruído onde vivem os personagens. Os irmãos Hughes usam vários planos abertíssimos, revelando estradas desertas, carcaças de veículos, cidades destruídas e principalmente enormes crateras e marcas de explosões da tal guerra que destruiu o planeta.


Os irmãos também demonstram-se competentes nas cenas de ação, sem abusar da câmera epilética típica das produções modernas (embora os cortes rápidos na cena da luta no bar desorientem completamente o espectador). O grande momento do filme, disparado, é a câmera entrando e saindo do interior de uma casa durante uma feroz batalha entre os heróis e os vilões do lado de fora - não é um plano-seqüência, obviamente, mas a "maquiagem digital" engana e realmente parece que a cena não tem nenhum corte.

Pouca gente lembra que os Hughes têm pelo menos duas obras bem interessantes no currículo, o policial "Perigo Para a Sociedade" (1993) e a adaptação de HQ "Do Inferno" (2001), sobre os crimes de Jack, O Estripador. Mas O LIVRO DE ELI é disparado o seu melhor trabalho, com herói, vilão e ambientação que lembram um faroeste futurista - a vila de Carnegie até parece uma cidadezinha do Velho Oeste, e a briga no salloon só reforça a semelhança!

Há também o final espertíssimo com uma bela revelação-surpresa, e até participação especial do faz-tudo Malcolm McDowell, que parece ter abandonado definitivamente o universo dos filmes classe Z para virar coadjuvante de luxo em Hollywood. (O elenco excêntrico tem ainda Ray "Justiceiro" Stevenson, uma envelhecida Jennifer Beals e o músico Tom Waits)


Claro que há algumas bobagens típicas dos blockbuster hollywoodianos, como o fato de que todo mundo é feio e acabado no mundo pós-apocalíptico, mas a mocinha que acompanha Eli (Mila Kunis) é uma gata com cabelo lisinho e limpinho, apesar do racionamento de água e de não existirem mais comésticos naquele ambiente.

Muito pouco para desmerecer um blockbuster inteligente e cheio de atrativos como O LIVRO DE ELI, que pode ser definido como um clone de "Mad Max" onde o grande tesouro para os personagens não é a água ou a gasolina, mas sim a esperança proporcionada pela religião - ou o poder de manipulação da mesma.

Em tempos de "Avatar", sempre é bom ver uma história conhecida sendo contada de um novo jeito. Mas é uma pena que, como "Constantine", o filme dificilmente encontrará o seu público.




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