TUAREG - O GUERREIRO DO DESERTO (1984)
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TUAREG - O GUERREIRO DO DESERTO (1984)



Quanto mais vezes revejo TUAREG - O GUERREIRO DO DESERTO (e só até esta semana foram umas 30, no mínimo), mais vezes me pergunto como é que esta produção ítalo-espanhola não se tornou um clássico do gênero. Afinal, fechando-se um olho para pequenos defeitos que revelam o baixo orçamento da película, o resultado é uma ambiciosa e bastante inspirada aventura épica, que consegue unir ótimas cenas de ação e violência (a especialidade do diretor italiano Enzo G. Castellari) com uma trama inspiradíssima e repleta de momentos poéticos (cortesia do escritor Alberto Vázquez Figueroa, autor do livro que deu origem ao filme). Pessoalmente, acho este o segundo melhor filme de Castellari, atrás apenas da obra-prima "Keoma".

Quem já leu o livro "Tuareg" sabe que é a história de Gacel Sayah, líder de uma aldeia de "tuaregs" (nome dado aos guerreiros que vivem no deserto), um personagem dúbio e originalíssimo: homem de honra, ele obedece, de maneira cega, às culturas e tradições milenares do seu povo (o que ele chama de "lei do deserto"), mas é completamente ignorante às leis da sociedade dita "civilizada". Em outras palavras, para ele, governo, exército, fronteiras entre países e outros tipos de "autoridade" não fedem e nem cheiram, bem como suas leis.


"Tuareg", o livro, não era de forma alguma uma história de ação. Pelo contrário, estava mais para um drama épico que narrava as terríveis provações de Gacel em uma terra dura (o deserto) e sua luta contra as injustiças dos civilizados, que não respeitavam suas tradições nem a sua cultura.

Infelizmente, nunca consegui encontrar nenhuma entrevista ou comentário de Figueroa sobre o filme de Castellari, mas acredito que o autor não deve ter gostado nada do que a italianada fez com sua obra, já que TUAREG - O GUERREIRO DO DESERTO adiciona uma boa dose de tiroteios e lutas à história original, criando algo que muitos críticos definiram como uma mistura de "Rambo" com "Lawrence da Arábia".

Gacel Sayah continua sendo o personagem principal, e confesso que sempre é um choque ver um guerreiro nômade do deserto com o rosto californiano e os olhos azuis do ator Mark Harmon (aquele mesmo que interpretou o professor boa-pinta no clássico da Sessão da Tarde "Curso de Verão").


Obviamente, Harmon aparece estrelando esta produção barata ítalo-espanhola anos antes da fama, quando só tinha feito alguns papéis secundários e participações em seriados de TV. Ele se tornaria astro nos EUA alguns anos depois (hoje estrela a série de TV "Navy NCIS"), e acredito que morre de vergonha desse seu início de carreira como guerreiro do deserto. É mais um ator que está na minha lista de "entrevistas que eu adoraria fazer algum dia", para questioná-lo sobre suas experiências no set do filme de Castellari, já que os repórteres "de verdade" não costumam fazer essa pergunta.

Passado o choque inicial, até que Harmon consegue convencer como um tuareg, já que passa a maior parte do tempo com o rosto todo coberto, ficando apenas com os belos olhos azuis à mostra.

Líder de uma pequena aldeia, Gacel Sayah é um dos guerreiros mais corajosos do deserto. No início do filme, um ancião conta a história da "grande caravana", com mais de mil homens, camelos e tesouros, que tentou cruzar um mítico deserto sem fim e desapareceu sem deixar rastros. Para espanto do ancião e dos seus ouvintes, surge nosso herói dizendo que atravessou a tal terra desolada sem fim não uma, mas duas vezes. Ou seja, o homem é foda!


Alguns dias depois, dois homens sedentos aparecem no acampamento. Gacel, honrando as milenares tradições de hospitalidade do seu povo (que dizem que ninguém pode negar abrigo a pessoas necessitadas cruzando o deserto), os recebe em sua aldeia. Mas logo surgem jipes do exército atrás dos dois hóspedes do tuareg.

Ele se recusa a entregá-los e tenta fazer valer a velha tradição, mas é claro que os soldados não a respeitam, dizendo que, ali, a lei são eles.

Os milicos então matam um dos homens e levam o outro com eles. Resultado: enfurecem o tuareg, que se sente desonrado e "indigno" por não ter conseguido proteger os "hóspedes". Segue-se 1h30min de um duelo solitário de Gacel contra todo o exército e até contra o governo do país!


Se TUAREG - O GUERREIRO DO DESERTO é um filmaço, parte do mérito se deve à força de seu herói: Gacel Sayah é um homem que não pára diante de nada, não tem medo da morte e não quer viver "desonrado", por isso lutará até o fim para libertar seu "hóspede" levado pelos militares.

Ele então descobre que o sujeito é Abdul El Kabir (Luis Prendes), presidente deposto do país, que estava fugindo do exílio.

Embora a luta sem trégua do tuareg ganhe a simpatia de um dos milicos, o capitão Razman (Paolo Malco, que trabalhou com Castellari em "Fuga do Bronx"), pois ele reconhece o guerreiro honrado que está enfrentando, o restante do exército sente-se humilhado pelas ações de Gacel e resolve caçá-lo e matá-lo a qualquer preço. Isso logo conduz às mirabolantes cenas de ação em câmera lenta, filmadas com a costumeira maestria maestria por Castellari.


Consta que o roteiro inicial de TUAREG - O GUERREIRO DO DESERTO teria sido escrito pelo próprio autor do livro, o espanhol Figueroa, junto com Vicente Escrivá. Mas Castellari garante que reescreveu a maior parte com a ajuda de seu colaborador de longa data Tito Carpi, mantendo apenas os diálogos de Figueroa.

Bem, para quem leu o livro, torna-se bastante óbvio que cenas como o ataque do tuareg à base onde Abdul é mantido prisioneiro só podem ser coisa de Castellari e Carpi!

Enquanto no livro Gacel penetrava silenciosamente na base, à noite, e cortava a garganta de todos os soldados enquanto eles dormiam, no filme temos uma mirabolante cena de ação onde Gacel encarna Rambo e sai fuzilando soldados em câmera lenta, além de usar galões de gasolina como se fossem explosivos para mandar metade da base para os ares!!!


Castellari também modificou o final original do livro, em que Gacel Sayah era morto pelo exército após cometer um crime que não pode ser explicado em detalhes aqui para não estragar a surpresa. O tal crime, porém, foi mantido no filme, garantindo um final trágico e bastante triste, que apenas realça a total ignorância do herói pelas "leis dos homens" (lembre-se que ele segue a lei do deserto).

Mas, ao invés de morrer, como nas páginas da obra literária, na telinha o tuareg absurdamente escapa com vida, e o filme ainda tenta dar um tom heróico à conclusão, quando na verdade é um desfecho totalmente irônico! Mas é bom ressaltar que essa nova conclusão acaba se encaixando perfeitamente no tom mais aventuresco adotado por Castellari no filme inteiro.

Para compensar a mudança no desfecho, TUAREG - O GUERREIRO DO DESERTO traz todas as melhores passagens do livro de Figueroa, como a dramática travessia pelo deserto sem fim (com direito ao consumo de corcovas de camelo para dar energia!!!); o momento em que o tuareg é cercado pelos soldados e obrigado a ficar sem água e sem comida no meio do deserto, acabando por beber o sangue quente do seu camelo (argh!!!) para não morrer de sede ou inanição, e ainda o encontro com o que sobrou da "grande caravana" desaparecida!


São cenas belíssimas, que o próprio escritor deve ter aplaudido, realçadas pela maravilhosa fotografia de John Cabrera e sublinhadas pela linda trilha sonora épica do mestre Riz Ortolani. Em algumas cenas, parece ter sido usado um filtro vermelho na lente da câmera, criando um clima tão desértico e quente que chega a deixar o espectador com sede no conforto da sua casa!

Assim, quem espera ver um típico filme desmiolado de ação como os que Castellari fez aos montes nos anos 80 (estilo "Guerreiros do Futuro" e "Fuga do Bronx"), irá se decepcionar. Ação há, mas não em doses cavalares, como em outras obras do diretor italiano. Em TUAREG - O GUERREIRO DO DESERTO, ele prefere adotar um tom mais poético e contemplativo (certamente a herança do roteiro original de Figueroa), mais centrado nos momentos solitários do tuareg no deserto e em seus diálogos inspirados, que revelam a estupidez da sociedade "civilizada" - como quando ele tenta entender porque Abdul passou 22 anos na cadeia e apenas quatro no poder, e mesmo assim acha que o sacrifício valeu a pena.


Além de Mark Harmon e Paolo Malco, outros nomes conhecidos aparecem no filme: o espanhol Aldo Sambrell (figurinha carimbada nos westerns de Sergio Leone) é o sargento Malick, um dos milicos linha-dura que querem a cabeça do tuareg de qualquer jeito; o italiano Antonio Sabato (de "Fuga do Bronx") é o capitão que se dá mal ao questionar as tradições milenares do herói; Romano Puppo e Massimo Vanni, que aparecem em quase todos os filmes de Castellari, aqui são dois soldados; Ritza Brown (de "Ator, A Águia Invencível") é a esposa de Gacel, e o próprio diretor Enzo aparece como um soldado que comanda uma sessão de tortura do tuareg - e, claro, acaba mal.

Apesar de ser uma ótima aventura, e apesar de todos os pontos altos mencionados ao longo do texto, TUAREG - O GUERREIRO DO DESERTO foi um fiasco de bilheteria, por razões bem óbvias: não conseguiu encontrar o seu público. Afinal, quem buscava um épico no estilo "Lawrence da Arábia" não estava a fim de ver tiroteios, explosões e muito menos Mark Harmon no papel de um guerreiro árabe falando inglês; já quem queria ver justamente tiroteios e explosões ficou decepcionado com o tom poético da maior parte do filme (há ação de menos, ainda mais depois da comparação com a série "Rambo").


Anos depois de seu lançamento, a obra tornou-se uma espécie de cult movie, principalmente depois das suas inúmeras reprises na TV (até hoje você encontra, em fóruns da internet, pessoas querendo saber o nome do filme em que o herói bebe o sangue do seu camelo).

Embora tenha se feito justiça tardia a este belo filme de Castellari, ele ainda não recebeu o devido reconhecimento, já que os DVDs que circulam no Brasil e no exterior são ripados de VHS sem a menor vergonha na cara, arruinando a belíssima fotografia original. Continuo esperando uma versão decente com imagem remasterizada e em widescreen.

No fim, este foi o último grande filme de Enzo, que depois se perderia em aventuras mais rotineiras, como o divertido "Lightblast" e o péssimo "Striker".

O próprio cinema italiano começou a entrar em decadência, e a maioria dos cineastas foi obrigada a trabalhar na televisão - o que aconteceu com o próprio Castellari. Uma pena, porque hoje dificilmente veremos um novo TUAREG - O GUERREIRO DO DESERTO saindo da terra da bota...


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Tuareg - Il Guerriero del Deserto/
Tuareg - The Desert Warrior (1984, Itália)

Direção: Enzo G. Castellari
Elenco: Mark Harmon, Luis Prendes,
Paolo Malco, Antonio Sabato, Aldo
Sambrell e Ritza Brown.



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