Alameda da Saudade, 113
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Alameda da Saudade, 113



Em 1951, no mesmo período em que os grandes estúdios paulistas davam os primeiros passos em direção ao gótico feminino que nunca chegou a se configurar como um cinema de horror, uma produção independente, realizada na cidade de Santos, no litoral de São Paulo, seria o primeiro exemplar de um filme de horror brasileiro – embora nunca reconhecido como tal por seus realizadores.

Trata-se de ALAMEDA DA SAUDADE, 113 (1951), de Carlos Ortiz, um melodrama sobrenatural que possui uma estrutura narrativa semelhante à das histórias clássicas de horror.

Segundo afirmava, em 1951, a revista A Scena Muda – que acompanhou a produção do filme com relativo interesse, mas deu-lhe pouca atenção após a malsucedida estréia –, ALAMEDA DA SAUDADE, 113 era uma “estranha história de amor, mesclada de lirismo e sombras de além túmulo”. O filme tratava de uma velha lenda urbana brasileira – a do rapaz que se apaixona, durante o Carnaval, por uma bela moça que acaba se revelando um fantasma –, mas ganhava um desfecho particularmente violento.

Pela ausência de outras discussões acerca do aspecto horrífico de ALAMEDA DA SAUDADE, 113, cabe descrever com mais detalhes sua narrativa, resumida a partir de uma publicação do roteiro feita em 1981, e único material ao qual foi possível ter acesso durante esta pesquisa, pois não consegui assistir ao filme (embora tenha notícias de exibições recentes dele no Rio de Janeiro).

O roteiro tem início num cemitério da cidade de Santos, quando um rapaz começa a contar a um coveiro a desventura do jovem Raul, seu irmão, que se suicidara naquele local um ano antes. Em seguida, um flashback conduz a história a um baile de Sábado de Aleluia, quando Raul (Rubens Queiroz) conhece a bela Inês (Sônia Coelho), uma jovem mascarada. Eles se apaixonam durante o baile e decidem continuar se encontrando.

No dia seguinte, passeiam pela cidade, mas Inês começa a ficar um pouco perturbada, especialmente quando os dois vão parar em um sarau poético no qual ela escuta o poema O Berço, escrito por uma tal Inês Poiares. Eles também tiram a sorte em um realejo, e ela fica muito triste ao ver a frase “encontraste teu novo amor”.

Raul desconfia dessas misteriosas atitudes, mas sente-se cada vez mais apaixonado. Então, ela o convida para visitá-la em sua casa, no seu aniversário, no dia seguinte, e lhe dá o endereço: Alameda da Saudade, 113. Raul aceita o convite e, por causa de uma forte chuva, empresta a Inês o seu casaco.

Na noite seguinte, ele vai até o endereço combinado e, lá, encontra apenas a mãe de Inês, que relata, assustada, a morte de sua única filha, ocorrida 10 anos antes, quando ela perdera o filho que tivera com um rapaz que morrera antes da criança nascer. Desesperado, Raul também descobre que o endereço onde ele está não é a Alameda da Saudade, 113, ao contrário do que vira até chegar ao local. O endereço dado por Inês era, na verdade, o de seu túmulo no cemitério.

Raul corre até a sepultura, e lá encontra sua capa de chuva pendurada na lápide – dentro da capa, encontra também um revólver, ali colocado por Inês na noite anterior. Então, ouve-se um tiro.

Numa fusão, o túmulo de Inês começa a florir. O filme volta ao seu começo, quando o narrador explica que os amantes foram enterrados juntos, e mostra a nova sepultura colocada no local, com as palavras: “Aqui jaz Inês Poiares, que depois de morta apaixonou-se.”

Em ALAMEDA DA SAUDADE, 113, o fantasma de Inês, capaz de interferir no mundo dos vivos de maneira negativa, levando uma pessoa à morte, é, sem dúvida, um personagem do horror clássico, por sua ligação com a morte, com a sexualidade desviante, com o romantismo. E, como o horror causado por Inês é o entrecho central do filme, pode-se dizer que o filme de Carlos Ortiz foi, à sua maneira, uma obra de horror.

Como assinalou o montador Máximo Barro em entrevista a mim concedida em março de 2007, é curioso que Carlos Ortiz (1910-1995), "um ex-padre comunista, tenha feito o primeiro filme espírita brasileiro". De fato, Ortiz (1910-1985) estava longe de ser o perfil mais provável para realizar o primeiro drama sobre espíritos reencarnados do cinema nacional.

Na época da realização de ALAMEDA DA SAUDADE, 113, ele trabalhava no jornal Folha da Manhã e participava intensamente da fundação do Centro de Estudos Cinematográficos do Cine Clube do Museu de Arte de São Paulo, onde ministrava cursos e produzia materiais didáticos sobre a sétima arte. Envolvido com a defesa do cinema brasileiro, que logo tomaria conta da crítica e dos Congressos do Cinema Nacional, aventurou-se na realização desse filme cuja narrativa tratava de uma lenda urbana surpreendentemente burguesa, escapista... e de horror.

Porém, seu filme nunca foi tratado sob esta perspectiva. Vários fatores contribuem para o “não-reconhecimento” de ALAMEDA DA SAUDADE, 113 como uma proto-ficção de horror brasileira: a inexistência de filmes brasileiros do gênero até aquele momento; o baixo status cultural desse tipo de filme no período (década de 1950); o fato de que os principais filmes de horror da época tratavam de monstros lendários e de ficção-científica; a má recepção ao filme por parte do público e da crítica, o que prejudicou toda a memória em torno dele.

Mas, sobretudo, a visão do próprio diretor sobre a obra (que ele descreve como a primeira proposta cinematográfica neo-realista do Brasil, filmada em meio à comunidade local e com intenções claramente políticas), obscurece completamente a questão do gênero – particularmente se estiver-se considerando o gênero como derivado de uma indústria de cinema, e não como uma estrutura narrativa abstrata.

Por outro lado, o não-estranhamento dos realizadores em relação ao tema claramente fantasioso e horrorífico num filme “neo-realista” brasileiro também pode sugerir, pelo menos, um aspecto de nossa cultura: o da aceitação da existência do sobrenatural na vida cotidiana.

A explicação dada pra Ortiz para sua opção temática em ALAMEDA DA SAUDADE, 113 pode ser encontrada em uma entrevista concedida a Carlos Eduardo Berriel, em 1981, na qual o cineasta conta que havia, entre os membros da equipe, muito medo em relação ao que chamava de “macartismo” brasileiro e a uma possível perseguição ao filme.
Assim, segundo ele: “Não enfrentamos, de pronto, uma preocupação com a mensagem, porque poderíamos ter até... dificuldades políticas. (...) [A preocupação] foi apenas com a forma” (BERRIEL, 1981, p. 17). Ao que parece, para os realizadores, um roteiro fantástico poderia passar como algo mais “inofensivo” aos perseguidores políticos de plantão.

ALAMEDA DA SAUDADE, 113 contou com um pequeno e aventureiro grupo de colaboradores. Sua produção foi acompanhada com interesse pela revista A Scena Muda, que, em maio de 1951, fez uma detalhada cobertura dos seus bastidores.

Segundo a revista, a produção encontrou muitas dificuldades por seus escassos recursos financeiros, mas contou com a ajuda do povo de Santos, que participava das filmagens e se transformava em público cativo para os comícios improvisados da equipe em defesa do cinema brasileiro.

Pela fama que o filme adquiriu na cidade, acabou gerando um contratempo que quase o tirou e circulação logo antes da estréia: o jornalista policial Orlando Criscuolo, de Santos, alegava ser o autor da lenda, que teria publicado como verídica, em 1947, e exigia o pagamento de direitos autorais para permitir a exibição. Após uma pequena batalha judicial, o juiz Alípio Bastos reconheceu que a história era de domínio público, e permitiu a finalização do filme.

Apesar da interessante aventura dos bastidores, ALAMEDA DA SAUDADE, 113 não teve sucesso de público ou de crítica, e ainda hoje é lembrado como um dos maiores fiascos do cinema brasileiro.

Segundo o professor Máximo Barro, em entrevista publicada no Dicionário de Filmes Brasileiros (SILVA NETO, 2002): “O material espírita – ou pelo menos espiritualista – era praticamente risível, em nada abonado pela direção canhestra, rebuscada e superacadêmica. Um prato cheio para os adversários [de Ortiz].”

O pouco sucesso da fita de Ortiz não intimidaria completamente o diretor. No ano seguinte, ele participaria da adaptação de Meu destino é pecar (outra história com elementos fantásticos), e ainda dirigiria, em 1953, a produção independente Luzes nas sombras, um melodrama sobre uma mulher que sofria de câncer.

Mas sua percepção de que uma lenda recorrente em várias cidades brasileiras poderia originar um filme fantástico não ocorrera em vão: quase 30 anos depois, no Rio de Janeiro, a lenda reapareceria no filme Uma fêmea do outro mundo (1979), produzido e estrelado por Kate Lyra, do qual falarei mais adiante.

Ficha técnica completa da Cinemateca Brasileira



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