O tempo foi implacável com os heróis de ação dos anos 80: Chuck Norris se aposentou e virou pregador do cristianismo, Schwarzenegger largou o cinema para ser governador e Michael Dudikoff sumiu do mapa. Entre os que teimaram em seguir na ativa, apenas Stallone conseguiu manter-se "fiel às origens" ao interpretar versões envelhecidas de seus personagens mais famosos, Rocky e Rambo. Já os outros "vovôs" que ainda insistem na profissão - Dolph Lundgren, Steven Seagal e Jean-Claude Van Damme - acabaram relegados ao inferno das produções direct-to-DVD.
Se Lundgren sempre foi astro de filmes B (e às vezes vilão de "filmes A"), Van Damme e Steven Seagal tiveram trajetórias bem parecidas: ambos passaram anos ralando em produções baratas até finalmente ganhar status de astros milionários na metade dos anos 90; ambos também perderiam o estrelato na virada para o século 21, devido a escolhas equivocadas, crises de estrelismo e problemas pessoais (no caso de Van Damme, o vício em drogas).
Entretanto, ao contrário dos colegas Lundgren e Seagal, Van Damme abriu os olhos depois de fazer algumas aventuras bem baratas e descartáveis. Resolveu investir em papéis mais complicados, heróis problemáticos como ele, em produções um pouquinho mais caprichadas. Claro que exigir que Van Damme realmente INTERPRETE é um pouco demais, mas ele vem tentando, e ganha méritos por isso - ao contrário do Steven Seagal gordão repetindo pela enésima vez o papel de policial durão.
ATÉ A MORTE é um dos grandes filmes dessa nova fase do belga, e provavelmente um dos melhores trabalhos da sua carreira. É uma produção de 2007 que foi lançada em DVD no Brasil sem grande alarde e que logo acabou soterrada naqueles balaios de ofertas das Lojas Americanas. Uma injustiça.
Antes de mais nada, esqueça todas aquelas bobagens que Van Damme estrelou enquanto sua carreira seguia ladeira abaixo. Falo de "Inferno" (1999), "Replicante" (2001), "A Irmandade" (2001) e o asqueroso "Ameaça Biológica" (2002). Perto destes lixos, ATÉ A MORTE parece Shakespeare. Ou filme para ganhar Oscar.
Se estivéssemos nos anos 70, o roteiro de Dan Harris (co-escrito por James Portolese) provavelmente teria sido filmado por Sam Peckinpah, Don Siegel ou William Friedkin, já que é uma história policial crua, violenta e realista como essa trinca de mestres adorava filmar.
Ironicamente, Dan Harris nem era nascido na época dos clássicos dirigidos por esse trio: ele tinha apenas 28 anos na época das filmagens de ATÉ A MORTE, e, entre seus outros créditos, estão os roteiros de "X-Men 2" e "Superman - O Retorno".
Como o título já anuncia, o que veremos é uma história sobre extremos. Inclusive para o próprio Van Damme, aqui encarnando um personagem complexo e que passa longe dos seus papéis característicos de herói carismático e piadista.
Em ATÉ A MORTE, o belga interpreta (sem ironia) um personagem profundo e complexo. Trata-se de um agente da Divisão da Narcóticos chamado Anthony Stowe, um dos melhores homens da corporação, mas ao mesmo tempo um tira corrupto, alcoólatra e viciado em heroína. Seu principal objetivo é colocar atrás das grades um ex-parceiro de departamento e agora traficante, Gabriel Callaghan (o excelente Stephen Rea).
Em meio à caçada obsessiva, Stowe entra em rota de auto-destruição. Uma das operações da sua equipe acaba com dois agentes mortos - e tudo por culpa da impulsividade do "herói", que sai dando tiros pra tudo quanto é lado, estragando a emboscada. Isso faz com que ele perca a credibilidade no departamento, além de atrair o ódio do policial cuja namorada morreu na ação.
Além disso, Stowe se afunda cada vez mais nas drogas, e isso destrói seu casamento e o seu relacionamento com os colegas de profissão. Mas, claro, isso não o impede de continuar atrás de Callaghan.
Certa noite, completamente chapado, ele é atraído para uma cilada numa lanchonete. Após detonar vários capangas do vilão com tiros certeiros (mesmo "alto" de heroína e álcool), Stowe se dá mal e toma um balaço certeiro na cabeça. Se ele morresse, o filme seria um curta-metragem; portanto, a bala disparada por um capanga de Callaghan provoca apenas uma lesão superficial no cérebro, deixando o protagonista em coma profundo.
Durante os meses no hospital, a vida do nosso "herói" piora ainda mais: seu superior descobre evidências do seu vício em heroína, sua esposa (Selina Giles) engravida de um amante e vai morar com ele, e seu arquiinimigo Callaghan continua sua carreira de crimes, eliminando a concorrência e tornando-se cada vez mais poderoso e perigoso.
Mas eis que um belo dia Stowe acorda do coma. Suas funções motoras e seu raciocínio estão comprometidos devido à lesão cerebral, e lentamente ele precisa recuperar os movimentos e até a fala.
Ironicamente, Anthony Stowe volta à vida como um novo homem, que viu na quase morte a oportunidade de "renascer" e uma chance de redenção, de corrigir os erros do passado. Isso inclui reaproximar-se da esposa, apagar a má imagem que conquistou transformando-se num policial íntegro e finalmente deter Callaghan.
Cinéfilos acostumados ao cinema de ação casca-grossa irão perceber que o roteiro de ATÉ A MORTE lembra bastante "Difícil de Matar", produção de 1990 em que Steven Seagal interpretava um policial que também acabava em coma após um atentado e tempos depois acordava em busca de vingança.
A diferença é que ATÉ A MORTE dá muito mais destaque para o lado dramático da questão do que aquele velho filme estrelado por Seagal.
Não é novidade ver Van Damme interpretando um tipo malvadão. Afinal, ele começou no cinema como vilão russo (em "Retroceder Nunca, Render-se Jamais"), e até já interpretou um serial killer que incendiava mulheres (no péssimo "Replicante").
Entretanto, em ATÉ A MORTE Van Damme está realmente barra pesada. Além de injetar heroína a seco, nosso "herói" destrói a carreira de um policial veterano por bobagem e, num bar de quinta categoria, enraba violentamente uma prostituta.
E mesmo que não seja propriamente um Pacino ou DeNiro, o belga consegue expressar todos os demônios internos do seu personagem com uma interpretação visceral, que não é nem exagerada e nem caricatural. Ele está ótimo até visualmente, com o rosto pálido e detonado pelos excessos. Também fiquei surpreso com a maneira como Van Damme, um ator limitado, consegue convencer na composição do "antes" e do "depois" de seu personagem.
ATÉ A MORTE começa e termina a mil por hora, com muitos tiroteios, mortos e feridos, mas o miolo do filme é puro drama, quando Stowe vê-se obrigado a rever seus conceitos em busca da redenção.
Com poucos filmes no seu currículo (incluindo outro do belga, "Segundo em Comando", que é uma aventura barata e genérica), o diretor Simon Fellows sai-se bem durante a maior parte do tempo, mas infelizmente é muito burocrático na construção do vilão do filme.
Inclusive acho inadmissível que Fellows tenha à disposição um ótimo ator indicado ao Oscar, como Stephen Rea, e o desperdice num personagem completamente superficial, que poderia ser interpretado por qualquer cabeça-de-bagre - e que só aparece em meia dúzia de cenas, sempre tentando parecer ameaçador, mas sem conseguir.
O roteiro também não escapa de uma bobagem aqui e ali. O cúmulo da estupidez é o momento em que um capanga algemado prefere arrancar a própria mão a tiros para escapar (!!!), ao invés de atirar apenas na corrente da algema!
Mesmo com esses errinhos primários, Fellows mostra capricho, com vários movimentos de câmera estilosos, e certo requinte técnico nas cenas de ação. Não há nada tão fantasioso: os tiroteios são realistas e brutais, com muito sangue e câmera lenta. As lutas também são bem pé no chão, sem malabarismos exagerados, até porque Van Damme já não é mais nenhum garotão.
Aliás, o cinema contemporâneo anda tão politicamente correto e chato que não tem como não se emocionar com o herói implacável encarnado pelo baixinho belga, que dá uma banana para os direitos humanos e sai executando inimigos rendidos ou atirando nas costas de bandidos desarmados que tentam fugir.
E se ATÉ A MORTE não vai mudar a vida de ninguém, pelo menos é uma tentativa bem-sucedida de um astro decadente de tentar reconstruir sua carreira, dessa vez buscando personagens mais difíceis e elaborados, ao invés de investir no "mais do mesmo" como os colegas Seagal e Lundgren. Inclusive esse seu filme é muito melhor que qualquer coisa que Seagal e Lundgren fizeram nos últimos 20 anos.
Van Damme levou tão a sério esse "novo rumo" que sua filmografia foi ficando cada vez mais rica após ATÉ A MORTE: ele fez o originalíssimo "JCVD" (2008), em que tem coragem de brincar com a própria imagem interpretando a si mesmo; o divertido "Soldado Universal 3" (2009), novamente como um herói menos "heróico" e mais problemático; e até emprestou a voz a um personagem da animação "Kung Fu Panda 2" (2011). Ficou tão cheio de si que recusou-se a participar de "Os Mercenários", de Stallone, apenas porque seu personagem não tinha "profundidade" (mas parece que se arrependeu e estará na Parte 2, em 2012).
Finalizando, eu recomendo ATÉ A MORTE por vários bons motivos: pela história que foge da mediocridade reinante no cenário do direct-to-DVD; pela direção eficiente; pelo personagem atormentado de Van Damme e principalmente pelos esforços de atuação do belga.
Além do mais, sempre é bom ver um filme de ação e/ou policial mais realista e "pé no chão", principalmente nesses tempos de bobagens exageradas como a série "Velozes e Furiosos" ou "Duro de Matar 4". E confesso que estou acompanhando curioso todos os novos trabalhos de Jean-Claude Van Damme depois desse.
PS: O IMDB informa que existem duas versões de ATÉ A MORTE. A que foi lançada no Brasil é a versão do diretor, feita para o mercado europeu. É mais longa (107 minutos), tem uma montagem menos picotada nas cenas de ação e uma conclusão pessimista e corajosa. Nos Estados Unidos, os produtores (Millenium Films) optaram por uma versão mais convencional reeditada com a supervisão do próprio Van Damme. Ela é mais curta (101 minutos), tem edição mais frenética e o final é feliz. Não vi essa segunda versão, mas, sinceramente, duvido que seja melhor que o corte do diretor.
Trailer de ATÉ A MORTE
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Until Death (2007, EUA) Direção: Simon Fellows
Elenco: Jean-Claude Van Damme, Stephen Rea,
Selina Giles, Mark Dymond, William Ash, Stephen
Lord, Gary Beadle e Adam Leese.
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