Filmes Legais
Bastardos cheios de glórias
Este blog nunca teve a proposta de discutir aqueles filmes novos sobre os quais todo mundo já está escrevendo, e sim dar espaço a obras mais obscuras. Entretanto, peço licença aos leitores mais radicais para abrir este pequeno post dedicado a
BASTARDOS INGLÓRIOS, o novo filme de Quentin Tarantino.
Comentá-lo ao menos rapidamente, para mim, é quase uma obrigação. Primeiro porque é uma homenagem ao cinema de ação "alternativo" sobre a Segunda Guerra Mundial, principalmente a obras italianas, como o cult "Assalto ao Trem Blindado", de Enzo G. Castellari - cujo título em inglês, "Inglorious Bastards", Tarantino roubou para ele. E segundo porque esta provavelmente é a grande obra-prima do diretor.
Todo mundo sabe, por outros sites, blogs, revistas, jornais e etc que
BASTARDOS INGLÓRIOS sempre foi a menina-dos-olhos do diretor, um roteiro que ele trazia na cabeça há 10 anos e achou que jamais conseguiria tirar do papel. Suas primeiras idéias previam uma superprodução monstruosa reunindo astros como Stallone, Schwarzenegger, Bruce Willis e até Adam Sandler (!!!), mas felizmente Tarantino pensou melhor e optou por um elenco que, à exceção de Brad Pitt, não tem astros nem estrelas, apenas ótimos atores e atrizes daquele tipo que você bota o olho e se pergunta:
"Onde foi que eu já vi ele antes?". (E quem acabou reunindo os astros sonhados pelo diretor foi Stallone, em seu futuro "Os Mercenários".)
Pois neste novo filme, Tarantino parece mais maduro como cineasta. É o seu trabalho com narrativa mais redondinha e circular, sem aquelas loucuras de idas e vindas no tempo (vistas em "Cães de Aluguel", "Pulp Fiction" e "Kill Bill") ou repetição de cenas por diferentes pontos de vista (vistas em "Jackie Brown" e "Pulp Fiction"). Ainda que seja dividida em capítulos com nomes característicos, como se fosse um livro (tipo
"Era Uma Vez na França Ocupada por Nazistas" e
"Operação Kino"), a trama aqui é contada na ordem cronológica, começando em 1941, com o massacre de uma família de judeus, e terminando em 1944, quando os Aliados vêem uma grande chance de acabar com a guerra matando Hitler e o alto comando do Terceiro Reich.
Só há um momento, à la "Kill Bill", em que a trama é "congelada" para que se conte a história de um dos personagens, o sargento Hugo Stiglitz (Til Schweiger), como se fazia no outro filme para contar o passado da vilã O-Ren Ishii; e também um outro intervalo muito breve em que novamente a história "pausa" para que um narrador explique sobre a alta combustão das películas nos anos 40.
Cada um dos capítulos apresenta personagens diferentes que, à medida que a história avança, acabam se cruzando (como acontecia em "Pulp Fiction"). No excelente início, por exemplo, conhecemos o maléfico coronel da SS Hans Landa (o austríaco Christoph Waltz), na França ocupada pelos nazistas. Ele comanda o assassinato da família de Shosanna Dreyfus (a francesa Mélanie Laurent), que consegue escapar jurando vingança ao maléfico vilão - mais ou menos como uma
"versão Segunda Guerra Mundial" da personagem de Uma Thurman em "Kill Bill".
É só no segundo capítulo que vamos conhecer os personagens-título: um grupo de soldados judeus norte-americanos chamado "Os Bastardos", reunido pelo tenente Aldo Raine (Brad Pitt) com a missão de aterrorizar as tropas nazistas, matando seus rivais violentamente e colecionando seus escalpos, à moda apache.
"Cada um de vocês me deve 100 escalpos nazistas", ordena Raine ao recrutar seu pelotão. E a fama dos "Bastardos" chega até o próprio Adolf Hitler (interpretado de forma caricatural por Martin Wuttke).
Nos próximos capítulos, vamos conhecendo outros personagens cujos encontros e conexões vão levando a trama adiante. Reencontramos a sobrevivente Shosanna crescida e dona de um cinema em Paris, usando o nome falso Emanuelle Mimieux. O soldado alemão Fredrick Zoller (Daniel Brühl, de "Adeus Lênin"), considerado um herói por ter abatido mais de 100 inimigos sozinho, se apaixona por ela, ignorando seu passado. Já Joseph Goebbels (Sylvester Groth), o ministro de propaganda de Hitler, usou Zoller como ator de seu último filme,
"O Orgulho de uma Nação", tentando levantar a moral das tropas com os feitos do bravo soldado alemão.
O pequeno cinema de Shosanna é escolhido para a estréia da obra, numa noite que reunirá toda a cúpula nazista, inclusive Hitler em pessoa. E a moça resolve usar a oportunidade para se vingar dos assassinos da sua família, ignorando que os Aliados estão criando seu próprio plano secreto para invadir o cinema e melar a festa, com a ajuda de uma agente dupla - a estrela de cinema alemã Bridget von Hammersmark (Diane Kurger).
Lendo assim parece que a coisa é simples, mas a trama vai se complicando à medida que os dois planos (o de Shosanna e o dos Aliados, que será executado pelos próprios "Bastardos") se cruzam acidentalmente. E o coronel Landa, que de bobo não tem nada, começa a suspeitar da conspiração. No meio do bolo, Tarantino vai misturando personagens reais sem qualquer comprometimento com a História "oficial" - além de Hitler e Goebbels, aparecem Winston Churchill (interpretado pelo veterano Rod Taylor) e o famoso ator alemão Emil Jannings (interpretado por Hilmar Eichhorn).
Tarantino nunca deixa de demonstrar que é um cinéfilo de carteirinha, já que a ambientação no pequeno cinema parisiense rende uma série de citações a grandes nomes do cinema da época (como o diretor alemão G.W. Pabst ou o comediante Max Linder). Identificar todas as citações e referências que o diretor-roteirista utiliza é uma deliciosa brincadeira para fãs de cinema (no caso de "Kill Bill", por exemplo, até hoje acabo vendo um filme obscuro das antigas e descubro que Tarantino tirou de lá algum diálogo ou nome de personagem, como aconteceu quando vi "O Samurai Negro").
No caso de
BASTARDOS INGLÓRIOS, as citações que mais saltam aos olhos são os nomes de alguns personagens, como Aldo Raine (evocando o ator Aldo Ray), Hugo Stiglitz (mesmo nome de um popular ator mexicano, astro dos filmes "Nightmare City" e "Tintorera") e o general Ed Fenech, interpretado por Mike Myers (homenageando a famosa atriz italiana Edwige Fenech, que fez vários filmes "giallo" dos anos 70).
Mais adiante, quando os "Bastardos" precisam usar nomes falsos de italianos, adotam pseudônimos tipo Antonio Margheritti (diretor de filmes como "The Last Hunter" e "Os Caçadores da Serpente Dourada") e Enzo Girolami (nome de batismo do diretor Enzo G. Castellari).
O uso das músicas instrumentais tiradas de westerns lembra "Kill Bill", e inclusive reaproveita algumas trilhas já utilizadas neste filme. Curioso é que nunca imaginei o famoso tema de "O Dólar Furado", composto por Gianni Ferrio, sendo usado numa cena "romântica", e não num duelo de pistoleiros.
Ainda no terreno das citações, dois detalhes me chamaram a atenção, mas ainda não vi nenhum "crítico especializado" citar, então pode ser loucura minha mesmo: o fato do sargento Donny Donowitz (interpretado por Eli Roth) usar um taco de beisebol para acertar os nazistas me lembrou um filme de guerra italiano chamado "Cinco Para o Inferno" (1969), de Gianfranco Parolini, onde um dos personagens usava uma bola de beisebol para o mesmo propósito; já uma brutal cena de estrangulamento pareceu idêntica, inclusive nos ângulos de câmera, a um momento do filme "Bay of Blood" (1971), de Mario Bava. Quem concordar comigo, levanta a mão. E sintam-se à vontade para compartilhar as referências que vocês pescaram.
Mas o que achei mais interessante em
BASTARDOS INGLÓRIOS, e que me parece a "maturidade" de Tarantino como cineasta que citei lá no começo, é um cuidado fotográfico na composição das cenas, e o fato de as longas cenas de diálogos, tradicionais do cinema "tarantinesco", desta vez favorecerem a narrativa, e não apenas encherem lingüiça.
Por mais que eu adore "Pulp Fiction" e "Kill Bill", não dá para negar que algumas conversas entre os personagens são desnecessárias ou se estendem mais do que o necessário (Travolta e Jackson com o próprio Tarantino no final de "Pulp Fiction", A Noiva com Esteban Vihaio em "Kill Bill Volume 2", por exemplo).
Sim, em
BASTARDOS INGLÓRIOS existem longos diálogos, como no interrogatório inicial entre o coronel Landa e o fazendeiro francês que esconde a família de judeus, ou na longa cena em que os conspiradores se encontram com a atriz Bridget von Hammersmark numa taverna repleta de soldados nazistas embriagados.
A diferença é que esses longos diálogos servem à narrativa, e não apenas ao gosto do diretor por escrevê-los: o interrogatório demonstra como o vilão é meticuloso e sempre descobre as mentiras que lhe contam, enquanto na cena da taverna o jogo feito pelos soldados apenas aumenta a tensão de que os conspiradores possam ser descobertos a qualquer momento. É o oposto dos piores trabalhos de Tarantino, o episódio final de "Grande Hotel" e o decepcionante "Death Proof - À Prova de Morte" (ainda inédito no Brasil, nos cinemas e nas videolocadoras), onde o bla-bla-bla não tinha função alguma na trama além de destilar cultura pop e enrolar.
Isso, mais o carinho especial que Tarantino dispensa a cada um dos personagens, faz de
BASTARDOS INGLÓRIOS o grande filme que é. Todos os personagens são cheios de ricas características, como o taco de Donowitz, repleto de nomes de judeus mortos pelos nazistas, ou a enorme cicatriz no pescoço do tenente Raine, nunca explicada pelo roteiro. Tarantino deve ter sofrido muito para resumir seu filme a 153 minutos, percebe-se que muita coisa do roteiro original deve ter sido deixada de fora, e isso só aumenta o charme do filme, pois outras aventuras dos "Bastardos" podem ser filmadas.
E realmente dá vontade de ver mais, é até uma pena quando alguns saem de cena - como o descontrolado sargento Stiglitz. Pitt está ótimo e propositalmente canastrão, com um cômico sotaque caipira (ainda mais evidente quando ele precisa se passar por italiano). Mas quem realmente brilha no filme é Christoph Waltz, fazendo do seu coronel Landa um vilão de respeito, mas também divertido (
"That's a bingoooo!"), diferente daquele "nazista clichê" de filmes tipo "A Lista de Schindler". E pensar que o diretor queria Leonardo DiCaprio para o papel (argh!). Se Waltz não for indicado ao Oscar de Melhor Coadjuvante, vai ser muita injustiça.
Não falta nem a violência típica do cinema do diretor (com direito a escalpelamentos explícitos e um nazista morto a golpes de taco de beisebol), e ele ainda se dá ao luxo de usar apenas a voz de atores do calibre de Samuel L. Jackson (como narrador em apenas duas seqüências) e Harvey Keitel (cuja voz é ouvida pelo rádio, como se fosse um militar aliado). O IMDB anuncia ainda participações do próprio Enzo G. Castellari (
"as Himself"!!!) e Bo Svenson, astro de "Assalto ao Trem Blindado", mas não consegui identificar nenhum dos dois no filme.
Sem mais delongas, corra ao cinema para ver
BASTARDOS INGLÓRIOS na tela grande. Ao final você provavelmente estará concordando comigo sobre o fato de esta ser a grande obra-prima de Quentin Tarantino.
Ou, pelo menos, um divertidíssimo filme sobre a Segunda Guerra Mundial sem qualquer compromisso com a seriedade, com personagens que não são "pessoas reais", mas sim "personagens de cinema", como em "Kill Bill". Por exemplo, você nunca vai ver, num outro filme, Hitler pedindo um chiclete a um dos seus soldados! Dá até vontade de rever aqueles amalucados filmes italianos sobre a Segunda Guerra Mundial...
Lembro inclusive que uma das grandes decepções de filmes como "Operação Valquíria" (aquele do plano para matar Adolf Hitler) é que você sabe que na vida real Hitler não morreu, e então o final do filme já é conhecido desde o início.
No caso de
BASTARDOS INGLÓRIOS não tem essa: Tarantino chega a reescrever a história pelo bem do seu roteiro e dos seus personagens. E não é que realmente ficou mais interessante que a própria "vida real"? Confira e opine! Se dependesse de mim, seria assim também nos livros de história.
"Say hello to my little friend!"
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