Quando se fala dos filmes que inspiraram Quentin Tarantino a fazer "Kill Bill", é muito fácil cair no lugar-comum e citar as obras mais confirmadas, como "Thriller - A Cruel Picture", os western spaghetti e os filmes de Hong-Kong tipo "Lady Snowblood". Mas pouca gente lembra daquela tonelada de produções baratas e bagaceiras que o Tarantino viu durante sua vida de viciado em tralhas, e das quais chupou não só personagens e situações, mas também diálogos inteiros. Uma delas, praticamente desconhecida (mesmo dos grandes fãs de "Kill Bill"), é O SAMURAI NEGRO, blaxploitation dirigido pelo filipino Cirio H. Santiago.
O velho Cirio, falecido recentemente (em setembro de 2008), tem uma respeitável carreira com mais de 70 filmes nos mais variados gêneros. Tarantino era um fã declarado do cinema barato e barulhento deste cineasta pouco reconhecido, inclusive teve um antológico encontro com o ídolo antes de sua morte. No Brasil, naqueles tempos áureos do VHS (é, eu não canso de usar esta expressão...), vários filmes de Santiago chegaram às nossas locadoras, principalmente as suas amalucadas aventuras no Vietnã, mas também alguns sexploitation ("Vingança Nua") e ficções científicas pós-apocalípticas ("Equalizer 2000"). Hoje você encontra estas fitas em sebos a R$ 1,00, mas acredito que, até agora, pouquíssimos filmes do diretor tenham sido relançados em DVD por aqui.
Este O SAMURAI NEGRO é uma das raras exceções. Pena que o tal DVD nacional seja mais um daqueles desserviços ao cinema independente prestados pelos picaretas da distribuidora Works, agora rebatizada "Líder Filmes". Mas, apesar do novo nome-fantasia, não se vê nada de liderança na empresa e muito menos no produto em si: além de usar um título em português que lembra um outro filme ("The Black Samurai", de Al Adamson), só para confundir o espectador, a distribuidora ainda conseguiu a façanha de colocar no mercado um DVD com legendas atrasadas em relação aos diálogos originais (tornando impossível o ato de assistir o filme com as legendas), e com dublagem em português na mesma situação (o personagem abre a boca e a voz dublada sai só um tempo depois). Logo, você gasta R$ 9,90 para ser obrigado a ver um filme em inglês sem legendas, já que apenas o som original está milagrosamente sincronizado. Alguém tem o telefone do Procon?
Tem muito de "Kill Bill" em O SAMURAI NEGRO, mas obviamente essa é uma versão masculina da velha trama da busca de vingança na ponta de uma espada. O roteiro é de Howard R. Cohen, um especialista em aventuras baratas e sangrentas (ele escreveu a "clássica" quadrilogia "Deathstalker", por exemplo).
Ele narra o drama de Doug Russell (o rechonchudo James Inglehart, de "De Volta ao Vale das Bonecas"), um soldado norte-americano no Vietnã. Com o fim da guerra chegando, ele se alia a outros dois soldados, McGee (Leon Isaac Kennedy, da série "Penitentiary") e Morelli (Carmen Argenziano, visto recentemente em "Anjos e Demônios"), para roubar uma fortuna em barras de ouro de uma base militar. Depois, o ouro é vendido a um bandido da região (Vic Diaz), em troca de uma pequena bolada.
Tudo poderia terminar bem para os três, mas o olho começa a crescer e McGee e Morelli decidem que será melhor dividir a grana em dois, e não em três. Para isso, resolvem cortar o pescoço do ex-amigo Russell quando ele está desprevenido, depois jogando-o ao mar. Só que o herói milagrosamente sobrevive ao atentado, milagrosamente não morre afogado (apesar de cair desacordado no meio do oceano), e milagrosamente é levado pelas ondas até a única ilha deserta das redondezas, que também milagrosamente não está tão deserta assim.
Pois ali vivem dois soldados japoneses (Joe Mari Avellana e Joonie Gamboa) que receberam ordens de vigiar aquela ilha ainda na Segunda Guerra Mundial, e, 30 anos depois, nem imaginam que o conflito já terminou, e continuam matando todos os que pisam no local!!! Mesmo assim, eles se compadecem do negro à beira da morte que as ondas trouxeram até a ilha, e resolvem curar seus ferimentos e mantê-lo vivo.
Quando nosso herói finalmente se recupera, resolve aprender com os dois japoneses todas as técnicas de manejo da espada para tornar-se um samurai - o "samurai negro" do título em português. Corta para a tradicional montagem de passagem de tempo, com o treinamento do rapaz até ficar perito no uso da espada, e finalmente surge um navio norte-americano na ilha para transportar Russell de volta à civilização.
Enquanto ele curtia uma vida de náufrago, muita coisa mudou nos Estados Unidos. Os velhos "amigos" McGee e Morelli, por exemplo, usaram seu dinheiro e influência para montar uma enorme e poderosa quadrilha de criminosos, praticamente dominando o submundo de Los Angeles. E McGee, para piorar as coisas, anda dando em cima de Maria, a esposa de Russell, que acredita que seu homem morreu na guerra, como contaram seus ex-companheiros na volta do Vietnã. Curiosidades: Maria é interpretada por Jayne Kennedy, que na época era esposa do próprio Leon Isaac Kennedy, e seu filho com Russell é vivido pelo filho verdadeiro do ator James Inglehart.
Como a vingança é doce, o samurai negro retorna do mundo dos mortos, mas não revela sua identidade para os vilões. Ele prefere curtir um tempo com a família (corta para uma montagem hilariante de cenas bregas, como o casal Russell e Maria correndo na praia em câmera lenta), e depois passa o restante do filme moendo criminosos a espadadas, arrancando orelhas, decepando braços e cabeças, enfim, fazendo tudo aquilo que a "Noiva" Uma Thurman mostraria outros 30 anos depois em "Kill Bill".
O SAMURAI NEGRO é simples e direto: um filminho de ação e vingança sem grandes reviravoltas, que, como toda produção blaxploitation que se preze, tem como alvo o público negro. Eles devem ter vibrado ao ver um negro samurai, unindo a malandragem e a fibra típica dos heróis blaxploitation daquele período com a honra e a habilidade dos guerreiros samurais dos filmes de Hong-Kong (que também estavam fazendo sucesso na mesma época).
Enfim, o público-alvo deve ter curtido muito as cenas em que o samurai negro sai mutilando os "branquelos" com sua afiada espada, bem como os diálogos tipo "The only brother is the man on the back of a dollar bill, and he ain’t black!", ou "He don't need a mother(fucker) like you to be his father!".
Inicialmente, o título do filme era "The Last Samurai"; na época do lançamento, entretanto, mudou para o genérico "Death Force". Finalmente, no começo dos anos 80, surgiu um terceiro título genérico, "Fighting Mad", quando o filme foi relançado nos cinemas para aproveitar a repentina fama de dois dos atores, Leon Isaac Kennedy e Jayne Kennedy, que na época era a primeira atriz negra a posar nua para a Playboy (o impagável cartaz desse filme, reproduzido acima, dá mais destaque para Jayne e Leon do que para o herói Inglehart!!!!).
Para quem duvida que Tarantino viu e se baseou no filme de Santiago na hora de fazer "Kill Bill", digamos apenas que um dos diálogos mais engraçados do seu filme, entre Sonny Chiba e Kenji Ohba no "Volume 1", saiu diretamente de O SAMURAI NEGRO. Em "Kill Bill", para quem não lembra, Ohba se queixava com Hattori Hanzo (interpretado por Chiba) de estar servindo saquê há muitos anos em seu restaurante, alegando que já seria general caso estivessem no exército; Hattori então respondia aos berros: "Se você fosse general eu seria imperador, e mesmo assim você continuaria servindo o saquê!". Em O SAMURAI NEGRO, o diálogo acontece entre os dois soldados japoneses isolados na ilha, quando um deles reclama que está assando peixe há décadas, e é igualzinho.
Além disso, há uma cena em que o herói atravessa um adversário com sua espada e depois ergue o sujeito no ar, como a Noiva (Uma Thurman) faria com um dos Crazy 88 no sangrento desfecho do primeiro episódio de "Kill Bill". E o próprio treinamento de Russell pelos japoneses lembra o "estilo Pai Mei" de treinar mostrado em "Kill Bill - Volume 2". Enfim, este é mais um típico caso de "se o Tarantino faz é homenagem, mas se um mané qualquer faz é plágio".
Inglehart convence como herói, mas o resto do elenco é risível de tão ruim: Kennedy e Argenziano gritam o tempo inteiro como os dois vilões principais, e interpretam como se fossem loucos, e não criminosos; já Jayne, como a esposa do herói, às vezes parece estar num melodrama barato, e ainda tenta mostrar seus dotes como cantora em cenas que estragam o ritmo do filme, e podiam muito bem ter ficado na sala de edição. Embora esteja repleto de tiros, espadadas, sangue e até cenas de luta, O SAMURAI NEGRO tem um ritmo meio arrastado. A vingança de Russel, por exemplo, só começa aos 50 minutos de projeção!
O resultado final é satisfatório, mas o outro filme de samurai negro - o "Black Samurai" de Al Adamson, que é da mesma época e foi lançado em DVD no Brasil como "O Dragão Negro"!!! - é muito mais divertido em seu fator trash. Por outro lado, O SAMURAI NEGRO tem seus achados, principalmente as cenas com Russell e os dois soldados japoneses veteranos na ilha (de longe a melhor parte do filme).
Fica, portanto, a sugestão: nada melhor do que uma impagável sessão dupla blaxploitation/trash com os dois filmes!
Veja O SAMURAI NEGRO na íntegra!
******************************************************* Fighting Mad/ Death Force/ The Last Samurai (1978, EUA/Filipinas) Direção: Cirio H. Santiago Elenco: James Inglehart, Leon Isaac Kennedy, Jayne Kennedy, Carmen Argenziano e Joonie Gamboa.
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