Deu a louca no cinema do Paraná
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Deu a louca no cinema do Paraná


Os Galhos do Casamento, O Diabo Tem Mil Filhos e outros filmes de apelo popular produzidos em Curitiba nos anos 70 e 80 continuam esquecidos do público e da crítica especializada

Por Ayrton Baptista Junior

Houve um sonho de cinema popular paranaense entre os anos 70 e 80. Sonho, não. Realidade! Aprendendo no improviso, longe de faculdades e sem apoio de governos, um grupo radicado em Curitiba colocou em prática a máxima do Cinema Novo (“Uma câmera na mão, uma ideia na cabeça”) mesmo com pretensões totalmente alheias às da turma de Glauber Rocha.

Não se espante caso você não tenha ouvido falar destes filmes: Os Galhos do Casamento, Deu a Louca em Vila Velha, Inocentes, porém Ingênuos, Caminhos Contrários, O Diabo Tem Mil Filhos, E Ninguém Ficou de Pé. Encontrar as cópias é tarefa para caçadores da arca perdida.

Um dos pontos de partida dessa história é um ônibus de Camboriú, que trouxe para Curitiba o menino Giovani Cesconetto. Aos 13 anos, ele fugiu da casa dos pais. “Conhecia o motorista. Viajei escondido dentro de uma caixa do papelão”, lembra o hoje dono de um teatro infantil, o Espaço da Criança, em Santa Felicidade.

Antes de se tornar ator, diretor, roteirista e cenógrafo, Cesconetto viveu três meses na Praça Santos Andrade antes de ser levado a um internato, onde começou a estudar teatro. Entre um e outro ensaio, arranjou emprego numa malharia e conheceu o tecelão Arlindo Ponzio, recém-chegado de Arapongas.

Ponzio sonhava com cinema desde a infância. Falava das fitas que via e até das que sequer existiam:

— O bandido entrou na igreja, roubou a santa e a cidade inteira foi atrás dele. Você viu esse filme?
— Não. Passou aonde?
— Em lugar nenhum. Eu inventei o filme agora.

Enquanto Cesconetto e Ponzio seguiam com a prosa na malharia, Florisbal Lopes vendia equipamentos de cinema, trabalhava para distribuidoras de filmes e até já havia produzido um longa-metragem: O Diabo Tem Mil Filhos, com direção e argumento do capixaba Adalberto Pena Filho. O diabo é que a Censura proibiu a exibição. Naqueles dias de 1970, a moral e os bons costumes não deixariam de condenar uma mulher (Sabrina Marchesini) que se casava virgem e se via obrigada a trair o marido (Rogério Dias, cultuado artista plástico) apenas para cumprir um pacto demoníaco (Nelson Morrison).

Catarinense de Mafra, Florisbal engoliu o prejuízo dos dias perdidos em Antonina e Caiobá e foi à Rua do Triunfo, fervo do cinema da Boca do Lixo paulistana. Em improvisadas mesas de bares daquela rua, cerca de cem filmes eram planejados anualmente. Planejados e realizados, é bom frisar. Dramas, policiais, comédias eróticas e tudo o mais que fosse rápido, barato e de retorno imediato. Não havia tempo para elucubrações.

Sem pensar muito, mais um catarinense, Euclides Fantin, de Itá, aceitou ser o fotógrafo da nova trama de Florisbal: E Ninguém Ficou de Pé, uma sátira ao faroeste italiano. O diretor paulista José Vedovato (cenógrafo de imponentes produções, como O Sobrado, de 1956) uniu durante dois meses de filmagem ídolos de telecatch (Brasão, Metralha e Jóia, O Psicodélico) e o apelo circense dos Irmãos Queirolo.

“Até hoje, passam esse filme em Campo do Tenente”, orgulha-se Florisbal, que apostou mais fichas nos Queirolo em Inocentes, Porém Ingênuos. “Mas ficou tão ruim que eu nem fiz questão de passar”, afirma o produtor. Ele parecia prever que a próxima sessão seria melhor.

Na porta da Globo

“Eu nunca tinha visto uma câmera. Por isso, trouxe de São Paulo o Hercules Brezeghello, um profissional experiente, que emprestou todo o equipamento. E o Florisbal também me apresentou o Euclides Fantin, que era câmera e já tinha feito direção de fotografia”, conta Giovanni Cesconetto.

Com a câmera já disponível e com o dinheiro de Ponzio, Cesconetto foi atrás de um ator famoso na porta da Rede Globo, no Rio de Janeiro. Tarcisio Meira e Francisco Cuoco estavam apressados naquela tarde. “Quem parou foi o Cláudio Cavalcanti. Acertamos o cachê naquela hora. E, para a nossa surpresa, ele veio mesmo”. Quando desembarcou em Curitiba, Cavalcanti ainda saboreava o sucesso da novela Irmãos Coragem.

A primeira produção da dupla Ponzio-Cesconetto foi Caminhos Contrários, filmada em bairros da capital, como o Sítio Cercado e o Atuba. Na época, os curitibanos só viam engarrafamento quando o locutor Sergio Chapelin falava do trânsito de São Paulo no Jornal Nacional. Por isso, a dupla conseguiu com facilidade duas placas de trânsito para que as filmagens de perseguições de carros não fossem atrapalhadas em Curitiba.

Filme feito, Sergio Chapelin fez a voz do trailer, Claudio Cavalcanti permaneceu em Curitiba para a divulgação, Ponzio comprou minutos de publicidade na TV Paranaense e, brilhando, os olhos da equipe viram filas de mais uma de quadra em busca um lugar no cine São João, que abrigava 2 mil espectadores. “Em Curitiba foi um sucesso, mas só em Curitiba”, recorda Cesconetto.

Cadê as peladas?

Ponzio levou Caminhos Contrários para exibidores paulistanos e cariocas. Os caminhos pareciam mesmo contrários fora do Paraná. No Rio, o poderoso Severiano Ribeiro, dono da maior rede de sala de cinemas do país, perguntou: “Tem mulher pelada?”. Não tinha. E a paciência de Severiano não passou do terceiro minuto.

Se o pedido era por mulher pelada, Os Galhos do Casamento oferecia três divas do cinema erótico: Aldine Müller, Helena Ramos e Zélia Martins. Às estrelas importadas de São Paulo, o produtor Florisbal Lopes adicionou o primeiro time de atores curitibanos dos anos 70: Nelson Morrison, Lala Schneider, José Maria Santos, Roberto Menghini, Danilo Avelleda e Airton Müller. Delcy D’Ávila também foi chamada, mas achou a trama um pouco picante e pulou fora d’Os Galhos.

Gilda Elisa, que, em seguida, estrelaria a novela Maria Bueno, da TV Paraná, ficou com o papel de Delcy, sua tia. Antes, porém, Gilda avisou o diretor peruano Sergio Segall, cineasta recém-saído da publicidade paranaense: “Cena de cama eu não faço. Meu pai me mata!”.

Como o cartaz de Os Galhos do Casamento destacava a sensualidade das atrizes, ficava claro que o programa era para homem. Naqueles dias, não era recomendável que uma mulher respeitável entrasse num cinema para uma história de tamanho ultraje — a de esposas revoltadas que arranjavam amantes. Pegava mal até para mulheres do elenco do filme. “A Lala Schneider foi durante uma sessão normal, depois da estreia, com um lenço na cabeça para não ser reconhecida”, entrega, anos depois, Gilda Elisa.

Sobrou filme, faltou público

Depois de ver o cine São João lotado durante as exibições de Caminhos Contrários, Arlindo Ponzio verificou entusiasmado que a sobra do material filmado dava paramais uma fita. Junto com os sempre fiéis Giovani Cesconetto e Euclides Fantin, o produtor bancou mais cenas em Ponta Grossa e nasceu Deu a Louca em Vila Velha, uma comédia com perseguições em todas as velocidades, de charretes a caminhões.

Cesconetto se desiludiu: “Ninguém viu. A estreia teve apenas um espectador”. O solitário da plateia não era parente de ninguém da equipe. “Era o ator que fazia um padre”, diz. Nem os figurantes apareceram, talvez porque já estivessem satisfeitos com os tantos churrascos pagos por Ponzio.

Se em Ponta Grossa ninguém viu, no Norte do estado Deu a Louca em Vila Velha garantiu os primeiros 15 minutos de fama para o então estudante de teatro Reinaldo Bessa, que apareceu em duas cenas: “Quando fui visitar minha família, em Jacarezinho, vi o cartaz do filme, com a minha foto, no supermercado. Amigos da família me reconheceram”, diverte-se o colunista social da Gazeta do Povo.

Um ônibus e ponto final

Mesmo sem nudez, Caminhos Contrários agradou ao italiano Rafaelle Rossi, diretor do primeiro longa brasileiro de sexo explícito, Coisas Eróticas, de 1982. Rossi comprou os filmes, manteve a trama e os créditos com os nomes da equipe paranaense. O homem de Coisas, no entanto, fez alterações. “O Rossi enxertou sexo explícito e mudou o nome”, revela Cesconetto. E, assim, Caminhos Contrários viajou país a fora com o sugestivo título de Bacanal do Terceiro Grau. “Vendemos o filme por 30 latas de negativo e um ônibus”, conta.

Se a onda era sexo explícito, Ponzio e Cesconetto resolveram apostar nela e usaram o ônibus para trazer de São Paulo algumas atrizes para rodar as cenas de Campeonato de Sexo. O filão, entretanto, não correspondia ao cinema pensado pelo grupo uma década antes — e todos se afastaram da produção.

A televisão fisgou o ator Giovanni Cesconetto, que vestiu a pele do Palhaço Pingão. Mesmo destino teve o câmera Euclides Fantin. Arlindo Ponzio, que já possuía lojas de disco no centro de Curitiba, foi atrás de outro sonho, o do ouro, e tornou-se um dos garimpeiros do Rio Madeira. Morreu há uma década, longe do cinema.

Também distante das câmeras, porém muito vivo, Florisbal Lopes vive num sítio em Mafra, Santa Catarina. “Eu gosto de mato, passarinho e erva-mate”, diz, sem pedir homenagem ao cinema que ele sonhou. E fez.

(Matéria publicada na revista Helena nº 4, da Secretaria de Estado da Cultura do Paraná)




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