Filmes Legais
LA SOMBRA DEL JUDOKA CONTRA EL DOCTOR WONG (1984)
Nos anos 1980, de volta à Espanha após um exílio voluntário para escapar da ditadura do General Franco, Jess Franco iniciou uma parceria com a Golden Films International, para quem dirigiu - pelo menos até onde se sabe - 19 filmes dos mais diversos gêneros. Ele tinha total liberdade garantida pelo produtor Emilio Larraga (que não se importava com a história e nem com a qualidade dos filmes, desde que eles ficassem prontos para distribuição), mas orçamentos bem apertados e equipes cada vez mais reduzidas.
Os termos dessa parceria colocaram o velho Jess numa espécie de zona de conforto, fazendo com que ele perdesse o pouco de vergonha na cara que ainda tinha. E assim, para a Golden Films, o diretor realizou algumas das maiores picaretagens da sua numerosa filmografia, como aquela que atende pelo espalhafatoso título de
LA SOMBRA DEL JUDOKA CONTRA EL DOCTOR WONG!!!
Infelizmente,
LA SOMBRA DEL JUDOKA... é um daqueles títulos raros da filmografia de Jess. Nunca foi lançado em VHS (e muito menos em DVD/blu-ray) em nenhuma parte do mundo, e por isso hoje só circula numa cópia de baixíssima qualidade que foi gravada da TV espanhola sabe-se lá em que década, e em espanhol sem legendas. Para piorar, esta única cópia disponível parece ser a quinta ou sexta gravação feita a partir da fita original, e está quase inassistível (como você pode perceber pelas imagens desta resenha).
Fica difícil avaliar um filme nessas condições, pois é complicado até de enxergar o que se passa durante as cenas mais escuras. Mesmo assim, eu não queria deixar essa atrocidade de fora da
MARATONA JESS FRANCO, considerando que é uma daquelas hilárias presepadas que só alguém muito cara-de-pau (como o Franco da década de 80) faria.
Em primeiro lugar, esta é única contribuição do cineasta espanhol para o ciclo "brucesploitation", aquelas produções vagabundas que exploravam o vazio deixado pela morte do astro Bruce Lee, e estreladas por imitadores que convenientemente se chamavam Bruce Le ou Bruce Li para tentar engambelar os espectadores desavisados (lembre-se que estamos falando de uma época sem IMDB e com pouquíssimas fontes de pesquisa sobre estas produções mais obscuras).
O problema é que Jess nunca foi um diretor conhecido pela sua habilidade para filmar cenas de ação. Ou pelo menos não ESSE tipo de ação, se é que vocês me entendem. Então como é que ele se saiu no comando de uma aventura de artes marciais "brucesploitation", mas rodada na Espanha ao invés de em Hong-Kong ou Taiwan?
Bem, é possível que o próprio Franco tivesse noção das suas limitações como diretor de ação. Por isso, em
LA SOMBRA DEL JUDOKA... ele preferiu brincar de Godfrey Ho - aquele maluco que fazia filmes de ninjas a partir de cenas de outras produções sem ninjas, lembra?
Para não quebrar a cabeça pensando em como coreografar artes marciais, Jess simplesmente pegou um filme oriental já pronto ("Nu Ying Xiong Fei Che Duo Bao / Seven To One", de 1973), retirou umas cenas e as enxertou no "seu" filme. Simples, não?
Infelizmente, a tal aventura pronta (pôster original ao lado) era estrelada por uma garota (Lingfeng Shangguan), que, na trama, buscava vingança pelo assassinato do seu pai. Ou seja, Franco ainda precisava colocar um Bruce Lee na história para ser um legítimo "brucesploitation"!
A solução foi chamar para o papel principal um jovem ator espanhol, José Llamas, que já havia trabalhado em outros filmes de Jess. Llamas nem oriental era, mas mesmo assim ganhou um novo nome artístico somente para este filme: "Bruce Lyn"!!!
Só havia um "pequeno" problema: o Bruce Lyn de Jess não sabia porcaria nenhuma de artes marciais, e mal conseguia caminhar de forma convincente, quem dirá lutar! Mas tudo bem, o diretor nem se importou com isso e tocou o projeto do mesmo jeito, buscando salvá-lo com as cenas enxertadas do tal filme oriental, e torcendo para ninguém perceber. Deu certo? Ora, é claro que não - e isso talvez explique porque o negócio foi tão mal distribuído!
LA SOMBRA DEL JUDOKA... tem uma trama sem pé nem cabeça escrita pelo próprio Franco (que assina roteiro e direção com seu tradicional pseudônimo "Clifford Brown", em homenagem ao trompetista de jazz homônimo). E se não bastasse acumular tantas funções, Jess ainda reservou para si o papel de grande vilão, o Dr. Wong do título.
Como quase tudo que diz respeito à filmografia do diretor, o ano exato em que ocorreram as filmagens ainda é um mistério - até pela mania que Jess tinha de rodar diversas produções uma atrás da outra, ou ao mesmo tempo. As informações variam conforme a fonte, mas, pelo que pude apurar, o filme teria sido produzido em 1982 e lançado apenas em 1984 (segundo o livro "Obsession: The Films of Jess Franco") ou 1985 (segundo o IMDB).
Espécie de sátira do Fu Manchu (Jess dirigiu dois filmes com o personagem no final dos anos 60, "The Blood of Fu Manchu" e "The Castle of Fu Manchu", ambos estrelados por Christopher Lee), o Dr. Wong é um megalomaníaco gênio do crime que está traficando heroína de Hong-Kong para os Estados Unidos dentro de inocentes bonequinhas.
Para dar a entender que o personagem é oriental, Franco passa o filme inteiro com os olhos meio fechadinhos (!!!) e trocando o "R" pelo "L". Fica bem claro, desde sua primeira cena, que ele não está levando a coisa a sério, ao contrário dos outros atores.
A CIA e a Interpol estão de olho no tal gênio do crime e querem arruinar seu império da droga. Para isso, as duas agências enviam seus melhores homens a Hong-Kong (na verdade, as Ilhas Canárias, na Espanha!).
Por parte da Interpol, temos os agentes Philip Morris (será uma homenagem à famosa fabricante de cigarros, já que Franco era um fumante inveterado?), interpretado por Daniel Katz, e sua parceira Maggie (Lina Romay); já por parte dos ianques, temos o invencível Bruce (!!!), muito possivelmente o pior "clone de Bruce Lee" já inventado!
O que Wong e seus capangas não sabem é que Bruce treinou os segredos mais obscuros das artes marciais e tem o dom sobrenatural de dar vida à sua própria sombra (!!!), que não pode ser atingida e muito menos ferida pelos inimigos, mas ao mesmo tempo desfere golpes bem sólidos contra eles!
Sucedem-se perseguições de carro, traições, alguma sacanagem bem light e muito papo furado. Mas incrivelmente, para um filme que se pretende aventura de artes marciais (e legítimo "brucesploitation"), as lutas são poucas e muito mal dirigidas, de forma que
LA SOMBRA DEL JUDOKA... será uma experiência realmente penosa para quem for assistir em busca de ação.
O quesito nudez feminina é garantido com as participações de Lina Romay e de María del Carmen Nieto, aqui usando o pseudônimo "Lia Kaplan" (e não seu tradicional "Mamie Kaplan"). Para quem não lembra, as duas moçoilas dividiram cenas também em "La Mansión de los Muertos Vivientes", entre outras produções dirigidas por Franco na época. María del Carmen interpreta uma assecla do Dr. Wong chamada "Ojos de Miel", que, obviamente, é enviada para seduzir o herói.
A melhor coisa de
LA SOMBRA DEL JUDOKA..., e que garante algum interesse a esse filme tosquíssimo em todos os níveis, é a ideia do herói que pode usar a própria sombra para lutar em seu lugar.
Lá pelas tantas, aparecem uns flashbacks (que são cenas tiradas de um outro filme oriental, esse não-identificado) com um velho mestre ensinando Bruce a usar esse poder sobrenatural:
"Com a meditação, você pode dominar a matéria com o poder da mente. Concentrando o seu espírito, você pode dar vida à sua sombra".
Não sei exatamente o que Jess havia tomado (ou fumado) quando inventou isso, mas é uma ideia absurdamente genial, principalmente pelo ridículo da coisa toda: ver "atores" adultos tentando bater numa sombra refletida na parede, e fingindo que apanham dela, é algo tão inacreditável quanto hilário!
Pena que o poder de Bruce seja sub-aproveitado. Um sujeito que consegue usar a sombra para bater nos inimigos seria virtualmente invencível (já que os rivais não conseguem "ferir" a sombra), mas o herói só utiliza este dom duas vezes ao longo do filme. E, quando não o faz, apanha que nem cachorro dos inimigos! Numa das cenas de arquivo tiradas de outro lugar, o tal mestre diz para Bruce usar seu poder apenas em último caso, e isso teoricamente justifica o seu uso esporádico. Então tá...
Como já foi dito (escrito), o "Bruce Lyn" de Franco não sabia lutar porcaria nenhuma, e portanto todas as cenas em que ele "luta" por conta própria, sem apelar para a sombra, são de chorar de tão ruins. Ciente das limitações, o diretor preferiu filmar lutas rápidas, que mal duram o som de um
"Iááááá!" do verdadeiro Bruce Lee - ou, como li em uma resenha menos elegante em espanhol,
"as lutas duram o som de um peido".
O problema é que, na pós-produção, Franco triplicou o tempo de duração dessas lutas rápidas ao colocá-las em câmera lentíssima, embora elas não sejam nem emocionantes, nem bem coreografadas para merecer esse tratamento! Vá entender...
Se o pobre José Llamas não luta nada, tampouco o fazem os figurantes que "interpretam" os capangas do Dr. Wong. Até porque, segundo algumas resenhas, estes figurantes teriam sido recrutados em restaurantes chineses da Espanha (!!!), e só estão no filme porque têm os olhinhos puxados, e não exatamente por seus dons como lutadores.
Os únicos momentos em que
LA SOMBRA DEL JUDOKA... apresenta algo minimamente parecido com artes marciais são nas cenas dos filmes orientais pirateadas por Franco. O problema é que esta inserção foi feita sem muito critério: lá pelas tantas, atores orientais aparecem se espancando sem que se saiba quem são ou por que motivo estão brigando, e depois desaparecem da narrativa sem cerimônia, simplesmente porque fazem parte de outro filme (e tenho certeza que, lá neste outro filme, eles tinham algum bom motivo para lutar!).
A exemplo do que Godfrey Ho fazia em Hong-Kong, Jess pegou diversas cenas com a atriz Lingfeng Shangguan em "Seven to One" (acima) e transformou-a em "Tai Lin", suposto contato de Bruce em Hong-Kong na nova história que escreveu. Claro que os dois personagens nunca chegam a contracenar, pois obviamente não fazem parte do mesmo filme.
Mesmo assim, graças à magia da edição e da redublagem, Tai Lin aparece em vários momentos da trama "observando" Bruce ou lamentando a morte de uma outra personagem do filme de Franco! Como eu sempre digo também sobre os filmes de Godfrey Ho e Bruno Mattei, estas picaretagens todas deveriam ter exibição obrigatória em faculdades de cinema, para ensinar aos alunos o verdadeiro poder da edição.
Inclusive o momento mais escalafobético de
LA SOMBRA DEL JUDOKA..., e o mais belo exemplo do citado poder da edição, ocorre quando Llamas, nas cenas gravadas por Franco, "luta" com um oriental anônimo em cenas tiradas de outro filme produzido lá em Hong-Kong!!!
É uma daquelas coisas que só vendo para crer (abaixo), porque Llamas "luta" desferindo golpes diretamente contra a câmera no
plano, e então a edição corta para o
contraplano do tal ator oriental de outro filme "levando" os golpes desferidos por alguém que nem está na mesma produção! Se isso não é o que chamam de "magia do cinema", eu sinceramente não sei o que é...
No fim, a melhor coisa de
LA SOMBRA DEL JUDOKA... (além da ideia da sombra que luta no lugar do corpo físico do herói, claro) é a cara-de-pau do pôster de cinema, que traz um desenho do verdadeiro Bruce Lee vestindo seu lendário macacão amarelo dos tempos de "O Jogo da Morte"! Se eu tivesse visto esse pôster na porta de um cinema na época, não pensaria duas vezes em ver o filme.
O resto é muito ruim, mesmo para os (baixos) padrões de Franco nesta época. Ressalte-se, entretanto, que a cópia assistida é realmente sofrível e não permite avaliar decentemente o filme. Talvez ele pareça melhor com imagem e som decentes, como muito western spaghetti que eu vi em cópias ruins nos tempos do VHS e depois me surpreendi ao rever em versões decentes em DVD. Por isso, se um dia aparecer alguma cópia boa desta tranqueira, eu me comprometo a reassistir e rever meu veredicto.
Mas e quanto ao Dr. Wong? Bem, o vilão escapa na conclusão do filme sem sofrer um único arranhão, com direito a ameaça:
"O mundo ainda ouvirá falar do Dr. Wong. E muito!". Sabe-se lá se Jess realmente tinha a intenção de fazer novas aventuras com ele ou se quis apenas usar o típico clichê do "vilão que promete voltar para a vingança".
Demorou um pouco, mas o vilão realmente voltou, e mais uma vez interpretado por Franco, no terrível em todos os sentidos "Dr. Wong's Virtual Hell", em 1999, uma das muitas porcarias que o diretor fez na sua fase vale-tudo, quando filmava direto em vídeo digital e sem orçamento. Triste fim para o pobre Dr. Wong...
Já José Llamas, ou "Bruce Lyn", não teve muito futuro como clone de Bruce Lee depois de
LA SOMBRA DEL JUDOKA... Não sem motivo, este é o seu único trabalho como "lutador de artes marciais". Depois de mais alguns filmes "normais", Llamas acabou virando ator pornô, aparecendo inclusive em algumas obras para o público adulto dirigidas em parceria por Jess Franco e Lina Romay!
Adotando um novo nome artístico, Pepito Tiésez, o ator estrelou títulos como "Las Chuponas" e "El Ojete de Lulú" (sendo que "Ojete", para quem não sabe, é uma palavra de baixo calão em espanhol para o orifício anal). Depois de algum tempo fazendo essas produções adultas, Llamas sumiu do mapa. Somente muitos anos depois descobriu-se que ele tinha morrido por complicações decorrentes da Aids, em data desconhecida (provavelmente ainda no final dos anos 1980).
Triste fim para o Bruce Lee espanhol, que certamente foi mais convincente fazendo amor como "Pepito Tiésez" do que fazendo guerra como "Bruce Lyn"..
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La Sombra del Judoka Contra el Dr. Wong
(1984, Espanha)
Direção: Jess Franco (aka Clifford Brown)
Elenco: José Llamas (aka Bruce Lyn), Jess Franco,
Lina Romay, María del Carmen Nieto (aka Lia Kaplan)e Lingfeng Shangguan (em cenas de outro filme).
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