Não vou gastar linhas e linhas (e nem a paciência do leitor) escrevendo sobre o sucesso do quarteto humorístico Os Trapalhões no Brasil dos anos 70 e 80, tanto na TV quanto no cinema. Esqueça o fato de o Renato Aragão ter virado um chato de galocha da década de 90 em diante, e esqueça esse arremedo de Trapalhões atualmente no ar ("Turma do Didi"), que comete até a heresia de colocar um inexpressivo "cantor do tcham" para ocupar uma vaga que já pertenceu ao saudoso e eterno Mussum.
Fato é que, 30 anos atrás, os Trapalhões comandavam nas bilheterias do cinema nacional, lançando religiosamente um filme por ano, sempre na época de férias. Fracassos de crítica e sucessos de público, estas produções, hoje, devem ser vistas (ou revistas) sob um viés nostálgico, e exclusivamente por aquele público adulto que gostava dos Trapalhões na sua infância. Eu sinceramente duvido que a garotada de hoje vá curtir os filmes do quarteto, principalmente os mais antigos.
Eu estou fazendo uma retrospectiva da obra do quarteto (comprei o box lançado recentemente pela Europa), e tenho me surpreendido com a ruindade de alguns dos filmes. É notório que a memória afetiva às vezes nos prega algumas peças. Por outro lado, muitas produções dos Trapalhões continuam tão boas quanto na época em que vi pela primeira vez (fedelho, lógico). OS TRAPALHÕES NO RABO DO COMETA se encaixa nas duas categorias: é, ao mesmo tempo, ruim e bom; logo, mais um autêntico FILME PARA DOIDOS.
Nos anos 80, duas obras marcaram uma ruptura no cinema popular dos Trapalhões. A primeira foi esta, que apresentou Didi, Dedé, Mussum e Zacarias em formato de desenho animado, numa época em que a animação nacional ainda engatinhava - o que é perceptível diante da pobreza de vários momentos do filme. A segunda obra foi "Os Trapalhões no Auto da Compadecida", de 1987, uma tentativa de "intelectualizar" o humor do grupo, que pela primeira vez obteve elogios da crítica, mas foi um fracasso de público (sobre essa falaremos em outra oportunidade; mas já adianto que, para mim, "Auto da Compadecida" é o melhor filme dos Trapalhões).
Em 1986, o Cometa Halley passaria pela órbita da Terra, cumprindo uma trajetória que se repete a cada 76 anos. O acontecimento deixou o mundo todo em polvorosa, como deve lembrar quem viveu naquela época. Criou-se, pela primeira vez, uma maciça campanha de marketing para aproveitar a passagem do Halley, que incluiu até revistas em quadrinhos e desenhos animados de uma família superpoderosa chamada "Os Halleys".
No cinema, o cometa foi citado em obras como "Força Sinistra", de Tobe Hooper, onde sarcófagos contendo vampiros espaciais pelados são encontrados na cauda do Halley e, levados para Londres, espalham uma epidemia incontrolável de "zumbificação".
Os Trapalhões também aproveitaram a deixa. Em 1985, produziram ao mesmo tempo um filme onde apareciam em carne e osso, "Os Trapalhões no Reino da Fantasia", e este OS TRAPALHÕES NO RABO DO COMETA. O primeiro foi lançado ainda em 85, e o segundo somente em 1986. Em "O Reino da Fantasia" já foi inserida uma pequena seqüência em desenho animado, cuja história faz parte da grande trama que teria continuidade no longa posterior - uma espécie de aperitivo do que viria.
O responsável pela produção da animação foi Maurício de Souza, o criador de Mônica, Cebolinha e cia. À época, os Estúdios Maurício de Souza estavam se aventurando em seus primeiros desenhos animados, respectivamente "As Aventuras da Turma da Mônica" (1982), filme dividido em vários episódios curtinhos, e o longa de uma história só "A Princesa e o Robô" (1983), uma espécie de sátira de "Star Wars" estrelada pela Turma da Mônica.
(Claro que estamos falando de desenhos animados da era pré-computador, quando tudo ainda era desenhado e animado à mão, gerando um trabalho imenso!)
OS TRAPALHÕES NO RABO DO COMETA começa com cenas de um show verdadeiro do quarteto no Teatro Scala, no Rio de Janeiro. Ironicamente, estas são as partes menos engraçadas do filme (cerca de 20 minutos), mas têm certo valor documental por registrar o grupo no auge da fama e da popularidade. Eles fazem uma série de piadas infames, interagindo com o público, até o surgimento do próprio Maurício de Souza no palco, com prancheta e tudo mais.
Dedé menciona o trecho de animação em "Os Trapalhões no Reino da Fantasia", e Maurício alerta que o Bruxo que apareceu na cena do filme anterior continua a caça aos quatro amigos. Dito e feito, o maligno vilão se materializa no palco, numa criativa fusão de desenho animado com atores de carne e osso, ANTES que isso ficasse comum em filmes como "Uma Cilada para Roger Rabbit", que é de 1988 (mas os Trapalhões não foram pioneiros, outras produções estrangeiras já haviam utilizado o recurso anteriormente).
A partir de então, Didi, Dedé, Mussum e Zacarias são "sugados" para dentro do universo do desenho animado, e começa o longa de animação propriamente dito - uma viagem no tempo envolvendo vários personagens e acontecimentos históricos.
A trama começa na Pré-História, mostrando Didi como um faminto homem das cavernas. Ele vai parar na caverna onde o Bruxo (dublado pelo humorista José Vasconcelos) realiza um ritual arcano para tornar-se o feiticeiro mais poderoso do mundo. Para isso, ele precisa tocar num triângulo de cristal "no momento em que as forças do Bem e do Mal se unem" (algo que ele repetirá umas 200 vezes ao longo do desenho, como se ninguém tivesse entendido da primeira vez).
O problema é que o malandro Didi toca no triângulo antes que o vilão, achando que isso lhe dará superpoderes para vencer os dinossauros. Resultado: o Bruxo, que tem um corvo no lugar de uma das mãos (!!!), começará a viajar no tempo até os próximos "encontros das forças do Bem e do Mal", quando precisa segurar a mão do Didi (hmmm...) para pegar de volta os seus poderes.
A partir daí, a história pula para a Guerra de Tróia, com direito a "jegue de Tróia" e Mussum como Aquiles; para Roma, onde Zacarias é Nero; para a Idade Média; para o Velho Oeste; para a Chicago dos anos 30 e, finalmente, para a década de 80, quando todos os personagens se encontram numa favela carioca.
O humor chulo do filme, hoje, seria considerado politicamente incorreto. Afinal, a maioria das piadas simplesmente brinca com o "apelo homossexual" da necessidade do Bruxo de segurar na mão do Didi para recuperar seus poderes (na época, a homossexualidade ainda era motivo de piada). Outro momento que provocaria queixas nestes tempos bem frescos mostra o Bruxo construindo uma catapulta para jogar Mussum Aquiles por cima dos muros de Tróia, e apelidando o mecanismo de "lança-negão"!
Mas a verdade é que há partes bem inspiradas no roteiro escrito por Dedé Santana (também diretor!!!), Maurício de Souza e Reinaldo Weissman. Principalmente porque o formato de animação permite adotar um absurdo humor nonsense, bastante diferente do tradicional humor circense e pastelão dos Trapalhões "de carne e osso".
Isso aproxima o desenho animado do humor exagerado dos quadrinhos dos Trapalhões publicados pela editora Bloch na época. Por favor, não confundam com aquele medíocre gibi da Abril que trazia o quarteto em formato infantil; estou falando das revistas dos anos 80, em que os personagens eram adultos e participavam de sátiras estilo revista Mad, ou de histórias com forte teor "para maiores", em busca de mulheres e dinheiro fácil.
(Relendo algumas dessas histórias hoje, fico pensando no estrago irreversível que devem ter feito na mente de muitas crianças inocentes daquele período, muito antes da onda do "politicamente correto" invadir também os quadrinhos).
Entre as várias gags neste estilo, há um momento clássico em que Didi está tentando fugir do canhão de luz apontado pelos guardas de um presídio; ao encontrar uma tomada no meio do caminho, ele a desliga acreditando que assim irá apagar o holofote, mas na verdade apaga a Lua!
Também há três "momentos merchandising" que são engraçadíssimos de tão absurdos, fazendo menção explícita a uma das patrocinadoras do filme, a Royal. Toca até o jingle da empresa na época ("A-bra a boca... É Royal!"). O curioso é que estes três trechos eram cortados sempre que o filme reprisava na TV aberta.
Outra curiosidade é que os animadores aproveitaram para colocar várias citações e referências no fundo das cenas. Assim, há "participações especiais" de personagens clássicos do Maurício (o dinossauro Horácio, o elefante verde Jotalhão e a própria Mônica), do King Kong no topo do Empire State e até uma bandeira com os dizeres "Diretas Já!" na cena do Coliseu!!!
Mas uma das melhores coisas de OS TRAPALHÕES NO RABO DO COMETA é a participação de bandas famosas dos anos 80 na trilha sonora. Algumas são conhecidas até hoje (Ultraje a Rigor, que faz uma sátira do seu sucesso "Eu", e Ira!); outras sumiram sem deixar vestígios, como Premeditando o Breque, Rumo, Suíte, Metalurgia, Synopse e Xarada.
Na conclusão, o desenho animado se encerra e a trama volta para o palco do Scala, quando os Trapalhões de carne e osso reclamam da imaginação fértil de Maurício. Ele então prepara uma última surpresa para o quarteto, fazendo o próprio Cometa Halley aparecer no palco, em outra cena que mistura live-action com desenho animado - num finalzinho bem sem graça, por sinal. Descontando estas cenas com os Trapalhões "de verdade", a parte em animação dura menos de 50 minutos.
Se esquecermos o valor afetivo do filme (que era reprisado praticamente todo ano na televisão em época de férias), ele ainda tem certo valor pelo divertido "fator trash" de analisar a pobreza da animação, com cenários imóveis, personagens de pouca expressão e, muitas vezes, pequenas "travadas" nos movimentos, resultado das técnicas improvisadas ainda utilizadas na época.
Assim, OS TRAPALHÕES NO RABO DO COMETA continua um divertido programa trash e/ou nostálgico para os trintões e quarentões que viveram aquele período de glória dos Trapalhões. Mas confesso que tenho muita curiosidade em saber se esta animação funcionaria com o público infantil atual. Provavelmente não.
Um filme que vale a pena ter em DVD, pois já virou peça de museu! Como os próprios Trapalhões, por sinal...
Cena de OS TRAPALHÕES NO RABO DO COMETA
******************************************************* Os Trapalhões no Rabo do Cometa (1986, Brasil) Direção: Dedé Santana Elenco: Renato Aragão, Dedé Santana, Mussum, Zacarias, Maurício de Souza e José Vasconcelos (voz do bruxo).
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