SANTUÁRIO MORTAL (1968)
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SANTUÁRIO MORTAL (1968)



"Necronomicon", aquele delírio erótico que Jess Franco dirigiu em 1967, teve uma repercussão fantástica, motivada pelo lançamento do filme nos Estados Unidos com grande campanha de marketing (rebatizado "Succubus"), e também por aquele famoso comentário elogioso do grande Fritz Lang. Tudo isso deixou o diretor espanhol com a moral lá em cima. E a melhor consequência da repercussão de "Necronomicon" foi a entrada em cena de um produtor inglês chamado Harry Alan Towers e seu talão de cheques.

Towers iniciou uma breve parceria com Franco, entre 1968 e 1970, marcada por nove filmes realizados com orçamento considerável, elencos repletos de nomes famosos e lançamento garantido nos cinemas do mundo inteiro. Foi, provavelmente, a fase em que o velho Jess foi melhor produzido e distribuído, e o resultado disso pode ser visto em "Marquis de Sade's Justine" - ou SANTUÁRIO MORTAL, como a obra foi rebatizada no Brasil e alguns outros países.


O produtor inglês sonhava há anos em realizar uma adaptação do livro "Justine: Os Infortúnios da Virtude", do infame Donatien Alphonse François de Sade, conhecido apenas como Marquês de Sade.

Esta mesma obra já havia sido adaptada para o cinema em 1963, pelo francês Roger Vadim, em "Vício e Virtude" ("Le Vice et la Virtu"). A diferença é que Vadim modernizou a trama (que se passava originalmente na século 18) e ambientou-a durante a Segunda Guerra Mundial. Por coincidência, o italiano Pier Paolo Pasolini depois faria a mesma coisa com outra obra de Sade, "Saló ou 120 Dias de Sodoma", em 1975.

Capa da edição "ampliada" de "Justine", publicada em 1791.

Depois de assistir uma exibição de "Necronomicon", Towers acreditava que Jess Franco era a pessoa mais indicada para tirar o projeto do papel - e por um valor bem abaixo do preço do mercado, digamos. Jess conhecia bem a obra do Marquês e inclusive já a havia citado em filmes anteriores (principalmente "O Sádico Barão Von Klaus" e o próprio "Necronomicon").

Em SANTUÁRIO MORTAL, Jess teria não apenas um orçamento de aproximadamente US$ 1 milhão (soma bastante considerável na época, e um dos melhores orçamentos que ele teve na vida inteira), mas também a oportunidade de trabalhar com atores famosos como Klaus Kinski e Jack Palance. Como recusar?


Infelizmente, ter um produtor que assina cheques polpudos geralmente também representa imposições ao diretor. E não foi diferente em SANTUÁRIO MORTAL: Franco queria Rosemary Dexter ("Por uns Dólares a Mais") para o papel principal de Justine, a virginal garota recém-saída do convento que passa por uma traumática odisseia de medo e dor no livro do Marquês de Sade; Towers, por outro lado, acreditava no potencial de Romina Power, uma jovem que, como atriz, era bem medíocre, mas tinha um sobrenome e um pai famoso - ninguém menos que o galã das antigas Tyrone Power! E foi assim que o pobre Jess viu-se obrigado a trabalhar com uma atriz que não queria e com quem não simpatizou desde o primeiro dia...


"Justine: Os Infortúnios da Virtude" foi escrito por Sade em 1787, enquanto ele estava preso. Esta primeira edição tinha pouco menos de 200 páginas e era até bem leve, considerando outros trabalhos do Marquês. Quatro anos depois (em 1791), Sade lançou uma edição "revista e ampliada" da obra, muito mais gráfica nos relatos de sexo e brutalidade.

Foi esta versão que ficou famosa e foi publicada, provocando enorme polêmica: Napoleão Bonaparte, então imperador da França, ordenou a prisão do autor (o que manteve Sade na cadeia pelos próximos 13 anos, e até a sua morte), e declarou que "Justine" era "o livro mais abominável já escrito". A destruição da obra chegou a ser ordenada pela corte francesa em 1815, mas algumas edições "piratas" sobreviveram.


O livro conta a história da jovem Justine desde a sua saída do convento, aos 12 anos, até sua morte prematura aos 26. Durante todo esse tempo, a garota tenta seguir uma vida "direita" e só se dá mal, passando pelas mais terríveis provações em sua busca pela virtude.

No final, ela reencontra a própria irmã, Juliette, promovida a aristocrata por ter feito justamente o caminho inverso - o do vício e do crime. Logo, a "moral" da história é bem clara e pode ser aplicada até hoje: quem é bonzinho só se fode! Ou, nas palavras do Marquês, "está escrito que as atribuições e as dores devem ser o terrível atributo da virtude. Mas enquanto a recompensa da virtude é a desgraça e a infelicidade, o caminho do vício conduz à felicidade e à prosperidade". 


Enfim, um prato cheio para Jess Franco, não é mesmo? Principalmente considerando que o diretor colhia os louros de seu "Necronomicon", um trabalho repleto de cenas "delicadas" envolvendo sexo, lesbianismo e até sadomasoquismo, além de uma "moral" bastante duvidosa para a época...

Por isso, é surpreendente constatar como SANTUÁRIO MORTAL é um dos trabalhos mais convencionais de Franco. Mesmo adaptando uma obra maldita de um autor maldito, ele parece dirigir o filme com o freio-de-mão puxado, sempre se segurando para mostrar o mínimo possível de sexo, violência e perversão. O resultado é uma obra grandiosa, provavelmente a mais "hollywoodiana" que Jess já fez, mas ao mesmo tempo aquém do potencial do diretor e do material.


O filme começa com o Marquês de Sade (Klaus Kinski, quem mais?) sendo levado para a prisão. Já dentro da sua cela, ele começa a ser assombrado por fantasmas e delírios envolvendo garotas nuas sendo torturadas. Inspirado por essas visões (nunca fica claro se o autor vivenciou essas situações ou se são apenas criações da sua mente distorcida), o Marquês se senta a uma mesa e começa a escrever o que viria a ser "Justine: Os Infortúnios da Virtude".

Aí a história do livro é narrada como se Sade estivesse contando ao mesmo tempo em que escreve. E tanto o Marquês quanto Klaus Kinski saem de cena. (Alguns takes do autor escrevendo aparecem mais tarde ao longo da narrativa e na conclusão, mas nada acrescentam.)


Na trama do livro "Justine", estamos em plena França do século 18 (mas as cenas foram filmadas na Espanha). As jovens irmãs Justine (Romina Power) e Juliette (a austríaca Maria Rohm, então esposa do produtor Towers), que vivem num convento desde a tenra ridade, recebem a notícia de que sua mãe faleceu e seu pai acabou de fugir do país deixando várias dívidas para trás. Em resumo, o dinheiro acabou e elas precisam picar a mula do convento!

Abandonadas pela primeira vez ao próprio destino nas ruas de Paris, elas demonstram comportamentos opostos: enquanto Justine é ingênua e acredita que precisa continuar sendo uma pessoa boa, seguindo os ensinamentos aprendidos no convento, Juliette é mais cínica e consciente da "vida real", e resolve imediatamente procurar emprego no bordel de Madame De Buisson (Carmen de Lirio).


Justine condena a irmã por abandonar tão rapidamente o caminho da virtude e a abandona. Mas, ao dobrar a primeira esquina da cidade sozinha, tem suas únicas economias roubadas (por um padre!!!), e precisa trabalhar como empregada doméstica numa pousada de quinta categoria para garantir pelo menos um teto e uma cama para dormir!

A partir daqui, SANTUÁRIO MORTAL assume uma narrativa episódica para mostrar as desventuras da pobre Justine. Até mesmo as roupas de luxo que a menina vestia são vendidas pelo dono da pousada onde passa a morar/trabalhar, e a única coisa que lhe resta no mundo é a sua "virtude" - que será colocada à prova pelo restante do filme.


Entre outras complicações, Justine é acusada de um roubo que não cometeu, é presa e depois foge com a ajuda de uma famosa ladra (Madame Dubois, interpretada pela vencedora do Oscar Mercedes McCambridge, mais conhecida como "a voz do demônio" no filme "O Exorcista"). Mais tarde, ela se envolve com o afetado Marquês de Bressac (Horst Frank), que planeja matar a esposa rica (a linda Sylvia Koscina) para ficar com sua fortuna e seu amante. Finalmente, Justine é obrigada a fugir, acusada de um assassinato que também não cometeu, e busca refúgio num velho santuário, onde espera recolher-se em paz e oração, sem saber que o lugar é habitado por monges devassos liderados pelo Irmão Antonin (Jack Palance!!!).


Este é, disparado, o grande momento do filme, justificando o título nacional (e um dos vários títulos alternativos estrangeiros, "Deadly Sanctuary"). Também é a parte que mais lembra os trabalhos anteriores (e posteriores) de Franco. O espectador descobre que os monges (entre eles Howard Vernon, o eterno Dr. Orloff) estão em busca do "prazer supremo", e, num momento típico tanto das obras de Sade quanto das de Franco, Justine é iniciada num mundo de sexo e perversão, sofrendo uma série de torturas e abusos pelas mãos dos "homens santos"!

Enquanto isso, um Jack Palance completamente bêbado (algo que é visível mesmo pelo mais desligado dos espectadores) fica dando desconexos discursos sobre crime e virtude, não poucas vezes esquecendo o texto no meio, e sempre rodeado de mulheres nuas. Ele deve ter improvisado boa parte desses discursos em meio aos seus delírios de embriaguez, num momento hilário e inesquecível!


Ao mesmo tempo em que Justine só se dá mal, SANTUÁRIO MORTAL também nos mostra a vida boa de sua irmã Juliette, que de prostituta de luxo acaba se tornando assassina e milionária (ela mata um nobre frequentador do puteiro para roubar seu dinheiro, e depois mata também a cúmplice e amante que lhe ajudou a cometer o crime, para não precisar dividir a fortuna).

Na conclusão, assim como acontecia no livro do Marquês, Justine e Juliette se reencontram e a garota certinha que foi abusada durante o filme inteiro pode constatar como sua irmã se deu bem seguindo o caminho "errado". Porém, ao contrário do que acontecia no livro, Justine não é morta instantaneamente por um raio (!!!), recebendo o alívio de um "final feliz" - se bem que, considerando a onda de azar que sofreu durante o filme, eu não acredito que ela vai resistir muito mais depois dos créditos finais!

A última cena de SANTUÁRIO MORTAL mostra o Marquês Kinski colocando o ponto final em seu novo livro, agora concluído.


Vendo o filme hoje, é perfeitamente compreensível o ódio que Jess nutria pela estrelinha imposta por seu produtor, Romina Power, que estava com 17 anos na época das filmagens. Primeiro porque o roteiro teve que ser substancialmente alterado para encaixar a atriz, e depois porque ela é péssima e em nenhum momento consegue fazer com que o espectador se compadeça do seu sofrimento.

Pelo contrário: Romina é tão xarope e insuportável que é mais fácil você torcer para ela tomar pancada o filme inteiro! Isso porque a atriz jamais consegue passar a impressão de uma menina ingênua e inocente, e transforma sua Justine numa completa estúpida. E, para piorar, ela aparece em 99% do filme! Curiosamente, o próprio Franco faz uma ponta (usando turbante!!!) como apresentador de um espetáculo erótico, que exibe Justine/Romina completamente nua ao público. Sabendo da relação de ódio do diretor com sua estrela, esta cena hoje assume um tom até irônico.


"Ela era como uma peça de mobília, você só podia pegá-la e colocá-la em outro lugar, ou dizer para ela olhar para tal lado de tal jeito", disse o diretor, sobre Romina, numa entrevista que faz parte dos extras do DVD norte-americano de SANTUÁRIO MORTAL. "Era como se ela estivesse passeando pelo set e estivéssemos filmando 'Bambi 2'. Na maior parte do tempo, ela nem sabia que estávamos gravando. O filme seria muito melhor com Rosemary Dexter no papel".

Hoje pode até soar curioso que a filha de um astro do calibre de Tyrone Power termine peladinha numa produção sexploitation dirigida por um sujeito como Jess Franco. Afinal, o que mais se vê são filhos de gente famosa dando carteiraço para já estrear com o pé direito no cinema (nem que seja para comprovar o quanto são medíocres).


Mas, no passado, filhos de astros geralmente tinham que ralar e mostrar serviço, o que explica como a pobre Romina foi terminar aqui. Um outro exemplo de filho nem tão famoso de astro famoso que trabalhou com Jess foi Christopher Mitchum, o herdeiro de Robert Mitchum, que nunca conseguiu subir para a primeira divisão e acabou eternamente ligado ao cinema classe B (às vezes até Z!), incluindo "Sem Face", dirigido por Franco nos anos 1980.

Já a pobre Romina - que filmou suas cenas em SANTUÁRIO MORTAL sempre acompanhada pela mãe super-protetora - não foi muito longe na "carreira" e praticamente abandonou o cinema (ufa!) no começo da década de 70 para formar uma popular dupla musical com o ex-marido Albano; eles tiveram uma bem-sucedida carreira cantando música popular italiana, que só acabou com o divórcio dos dois. Romina voltou para os EUA e, em 2007, voltou ao cinema fazendo uma ponta me "Go Go Tales", de Abel Ferrara!


Para os fãs mais hardcore da obra de Franco, um problema grave deste filme é não trazer a quantidade de sexo e violência que se espera de uma história do Marquês de Sade filmada por Jess. Até há uma quantidade generosa de mulheres nuas nas duas horas de projeção, mas é uma história que fala o tempo inteiro sobre sexo sem que atos sexuais sejam mostrados (algo como um filme erótico sem erotismo, em outras palavras).

Na entrevista do DVD gringo de SANTUÁRIO MORTAL, o diretor concorda que a adaptação do livro para o cinema foi suavizada em vários pontos, mas que mesmo assim muita coisa vista no filme era bem forte quase 50 anos atrás, na época das filmagens. O próprio produtor Towers assinou o roteiro, usando o pseudônimo Peter Welbeck.


Um exemplo de como a versão para o cinema foi "suavizada": no livro de Sade, Justine perdia sua virgindade à força, sendo estuprada de forma brutal numa das orgias dos monges doidões. Além disso, a garota passava anos aprisionada no tal santuário sofrendo abusos, até ser libertada com as outras prisioneiras graças à chegada de novos padres.

Tudo isso foi mostrado de maneira menos impactante no filme, onde Justine é "apenas" torturada pelos monges, mas aparentemente escapa com a virgindade intacta. E seu período de sofrimento no local dura no máximo algumas semanas, até que, numa reviravolta moralista, o "santuário mortal" é destruído por um raio (!!!), como se fosse a justiça divina desabando sobre aqueles religiosos devassos!


A quantidade de violência (e a forma como esses atos são representados) também pode frustrar o espectador, ainda mais pelo fato de o filme ter ganhado fama de censurado e proibido na época do seu lançamento.

Um dos poucos momentos mais fortes, em matéria de tortura e sadismo, é a cena em que Justine é marcada com um "M" no peito (para identificá-la como assassina, com o M de "murderer"), e isso é feito com um ferro em brasa, num efeito até bem eficiente.


Porém a Justine de SANTUÁRIO MORTAL não sofre 5% dos abusos físicos que a Justine do livro do Marquês de Sade - que, em determinado trecho, era chicotadas nos seios até ficar com eles em carne viva! -, e termina o filme mais como uma inocente falsamente acusada de cometer crimes do que como uma inocente que sofreu todo tipo de abuso físico e sexual ao longo da história, como a protagonista do livro.

Até porque a insuportável Romina Power apanha bem menos do que deveria pela sua interpretação irritante, e uma das únicas "torturas" a que é submetida envolve a aplicação de agulhas nas suas costas (abaixo) pela bonitona Rosalba Neri ("99 Mulheres"), que depois lambe o sangue saído dos ferimentos. Mas poxa, o máximo de sadismo em que conseguiram pensar foi colocar agulhas nas costas de alguém? Isso é acupuntura, e até faz bem para a saúde!


Assim, se há um excelente motivo para ver SANTUÁRIO MORTAL, este se chama Jack Palance. Sua performance sob efeito etílico é aquele tipo de coisa que fica na tênua linha entre genialidade e vergonha alheia. Há um momento fantástico em que seu Irmão Antonin "desliza" pelo cenário, como se estivesse flutuando, que eu sempre imagino que só está no filme porque Palance não conseguia caminhar, de tão mamado!

"Jack Palance estava bêbado o tempo inteiro", confirmou Franco, na entrevista do DVD norte-americano. "Quando chegou no set, ele tinha medo que eu o colocasse para fazer algo vulgar. Então começava a tomar vinho tinto às sete da manhã! Mas como ator era soberbo, e completamente insano, eu tinha que controlá-lo e mandá-lo parar". 


Outro momento mágico do filme que também fica no limite entre genialidade e vergonha alheia é a participação do malucão Klaus Kinski como Marquês de Sade. Foi seu primeiro trabalho num filme de Franco, mas ele não era a primeira opção: o produtor Towers queria Orson Welles, que inclusive era amigo de Jess e trabalhou com ele anos antes. Infelizmente, Welles se recusou porque não queria participar de um filme com cenas eróticas.

Aí Kinski entrou na jogada, mas estava com bastante moral na época por causa de suas participações em westerns produzidos na Itália - e, consequentemente, seu cachê tinha inflacionado. Para economizar, Towers contratou o alemão por apenas dois dias; num deles, Franco filmou as externas do Marquês sendo levado para a prisão, e no outro as cenas com Sade dentro da cela.


Klaus ganhou seu nome em destaque nos créditos, mas suas cenas como o Marquês de Sade não somam nem cinco dos 124 minutos do filme! E isso sem dizer uma única frase: ele aparece apenas andando de um lado para o outro no interior da cela e fazendo caretas!

Sabendo da fama de "difícil" do ator, Franco resolveu gravar estas cenas a sós com Kinski. "Pedi para o diretor de fotografia deixar a iluminação preparada nos pontos que iríamos filmar, e depois ele saiu e fiquei sozinho com Klaus. Trabalhamos o dia inteiro, sem comer. E ficou ótimo", opinou Jess, na entrevista para o DVD importado.


Na verdade, estas cenas destoam completamente do clima e do visual do restante do filme, e percebe-se claramente que são takes filmados dentro do já célebre "estilo Franquiano de direção": o ator fica perambulando pela sua cela sem rumo e sem direção, enquanto a câmera de Jess o segue de um lado para outro, dando super-zooms até sair do foco!

Muitos desses takes estão bem ruins (o ator fica fora do enquadramento, ou completamente fora de foco), e poderiam ter sido descartados na montagem sem que nada se perdesse. Mas, pelo jeito, a ordem era dar destaque para o tempo de Kinski no filme, pelo que ele custou ao produtor. E aí...


Que fique claro que eu não desgosto de SANTUÁRIO MORTAL, e inclusive acho um dos bons trabalhos desta fase da carreira de Jess. Mas o filme pode ser frustrante para quem espera algo no estilo pelo qual o diretor é mais conhecido. Eu até diria que este é um dos seus trabalhos mais acessíveis ao "grande público", sem tanta sacanagem e/ou maluquices, e pode ser encarado tranquilamente como um (quase) inofensivo drama/romance de época, no estilo de "As Aventuras de Tom Jones".

Essa impressão é reforçada pela produção de ótimo nível, que usa e abusa de cenários grandiosos (o exagerado Franco disse que foram usados mais de 100 sets!), belíssimos figurinos que realmente lembram roupas de época (ao contrário do que veríamos depois em filmes da fase "orçamento zero" de Jess), e até multidões de figurantes - um diferencial para um diretor acostumado a trabalhar com equipes reduzidas e poucos recursos.


Diversos prédios históricos espanhóis foram utilizados para cenários marcantes da história. O destaque vai para a curiosa casa do pintor Raymond (Harald Leipnitz), que é uma construção projetada pelo famoso Antoni Gaudí no Parc Güell (abaixo), em Barcelona. Devido ao teor do filme, e ao fato de a Espanha estar em plena ditadura do General Franco, os realizadores tinham que tomar muito cuidado na hora das filmagens - Jess até comenta, na entrevista para o DVD, que estaria preso até hoje se soubessem que ele estava rodando um filme baseado em obra do Marquês de Sade na Espanha sob ditadura franquista!

Já a trilha sonora foi assinada pelo italiano Bruno Nicolai. A parte mais lembrada é a música sinistra que toca nas cenas com o Marquês de Sade, e que parece mais exagerada e sombria do que o momento exige. Franco reaproveitou esta peça no posterior "Dracula Contra Frankenstein", com resultado bem melhor!


Durante um bom tempo, SANTUÁRIO MORTAL foi um dos poucos trabalhos de Franco disponíveis em vídeo no Brasil, junto com "Manhunter - O Sequestro", "Sadomania" e "Conde Drácula". Muita gente teve o seu primeiro contato com a numerosa fimografia do diretor graças a este filme, que foi lançado pela Transvídeo com uma capinha (veja no final desta resenha) que ressaltava o lado "polêmico" da obra, usando chamadas tipo "Chocante e controvertido", "Proibido na Europa" e "Nunca visto antes na América do Norte"!

Esta versão lançada no Brasil não era a "director's cut", e sim uma versão com 93 minutos (quase meia hora a menos!) lançada em alguns países da Europa e nos Estados Unidos. Apesar do que pode parecer, os cortes não foram nas cenas de sacanagem ou tortura, mas sim em todas aquelas partes que estão sobrando - e, convenhamos, a duração de 124 minutos é um exagero!


Entre as cenas podadas no versão de 93 minutos estão aquela em que as prisioneiras dançam no pátio da cadeia antes da fuga e uma tentativa de estupro de Justine pelos homens da quadrilha de Madame Dubois (que não dá em nada); outras cenas foram diminuídas, mas sem que se perdesse muita coisa.

Para quem conheceu o filme pela versão lançada pela Transvídeo, é essencial revê-lo agora em DVD, numa cópia boa e finalmente completa. Não tanto pelas cenas a mais, que não acrescentam nada de tão substancial; mas sim para finalmente ver a exuberante fotografia de Manuel Merino do jeito certo. Algumas cenas são realmente lindas, com iluminação em tons de vermelho e púrpura incidindo sobre os personagens, coisa que a cópia lavada dos tempos do VHS não permitia apreciar.


SANTUÁRIO MORTAL foi a primeira, mas não a única incursão de Jess Franco no universo literário do Marquês de Sade: ele depois dirigiu "Eugenie e o Caminho da Perversão", "Eugénie de Sade" e "Eugenie, Historia de una Perversión" (os três baseados na personagem do livro "A Filosofia da Alcova") e "Plaisir à Trois" e "Sínfonia Erótica" (baseados no episódio de "Justine" envolvendo o Marquês de Bressac e seu plano para matar a esposa).

Enquanto isso, outros realizadores trataram de fazer suas próprias versões da dramática aventura de Justine em busca da virtude: além daquela primeira adaptação de Roger Vadim, em 1963, também saíram "Justine de Sade" (1972), do francês Claude Pierson, com a bela Alice Arno interpretando tanto a irmã boazinha quanto a "malvada"; o pornô "Justine & Juliette" (1975), de Mac Ahlberh, e o lisérgico "Cruel Passion" (1977), de Chris Boger.


Se você não gostou dos filmes de Jess Franco que viu por achá-los mal-filmados, desconexos ou muito baratos e vagabundos, SANTUÁRIO MORTAL pode ser encarado como uma rara exceção na filmografia do diretor: trata-se de uma produção requintada, ambiciosa e muito bem acabada (com exceção, talvez, das cenas com Kinski como o Marquês, que são puro Franco). Também tem ótimos atores, e não apela para as maluquices e improvisos tradicionais do diretor.

Já para quem conhece o "verdadeiro" Franco, e gosta dos seus improvisos e até das barbeiragens que ele volta-e-meia comete, SANTUÁRIO MORTAL parecerá algo bem diferente, e isso justamente por ser muito "certinho". É um trabalho até meio impessoal, em que raríssimas vezes podemos reconhecer seu estilo característico.

O que, novamente, não quer dizer que seja um filme ruim. Em outras palavras, isso aqui foi o mais perto que Franco chegou do "mainstream". Para o bem ou para o mal...


Capa do VHS brasileiro de "Santuário Mortal"


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Marquis de Sade's Justine / Deadly Sanctuary
(1968, Inglaterra/Alemanha/Itália)

Direção: Jess Franco
Elenco: Romina Power, Jack Palance, Klaus Kinski,
Maria Rohm, Howard Vernon, Sylvia Koscina, Horst
Frank, Mercedes McCambridge e Rosalba Neri.



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