NECRONOMICON (1967)
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NECRONOMICON (1967)



Os primeiros anos da carreira do diretor espanhol Jess Franco foram marcados por projetos que nasceram de frustrações. Tanto "O Terrível Dr. Orloff" (1961), seu primeiro filme de horror, quanto "Miss Muerte" (1965), seu primeiro flerte com um cinema mais moderno, surgiram de roteiros diferentes que foram proibidos pelos censores espanhóis, obrigando-o a fazer outras coisas. Portanto, nada mais natural que NECRONOMICON, a obra que marcou a grande virada na sua carreira, também tenha nascido de dificuldades e de um projeto cancelado.

Pela primeira vez em sua longa filmografia, Franco abandona a narrativa tradicional para fazer um filme mais preocupado com o visual, sem contar uma historinha com começo, meio e fim. Isso seria uma constante na sua obra, repleta de trabalhos em que 15 minutos de trama são alongados para 90 minutos de filme graças ao uso recorrente de sequências delirantes e surreais, e por isso a carreira de Jess pode ser dividida em AN-DN (Antes e Depois de NECRONOMICON).


Mas esta obra de ruptura foi concebida originalmente como um filme de horror de baixo orçamento, na linha de "O Terrível Dr. Orloff" e "O Sádico Barão Von Klaus", e que marcaria o retorno de Franco ao gênero depois de três thrillers de espionagem feitos praticamente um depois do outro - "Cartas Sur Table" (1966), "Residencia para Espías" e "Lucky, El Intrepido" (ambos de 1967).

O título inicial do novo filme era "Green Eyes of the Devil". Em 1967, Jess visitou o produtor alemão Karl-Heinz Mannchen e mostrou-lhe um argumento de oito páginas. Mannchen gostou e entrou no projeto, mas contatou um amigo, o ator Adrian Hoven, para procurar por outros produtores associados que tivessem interesse em financiar a obra.


Foi quando começou uma daquelas histórias inacreditáveis de bastidores que são tão ou mais interessantes que o próprio filme, e que foi narrada em detalhes no livro "Immoral Tales: European Sex and Horror Movies", de Cathal Tohill e Pete Tombs.

Acontece que Mannchen só adiantou dinheiro suficiente para alguns poucos dias de filmagem, enquanto esperavam que um outro produtor mais endinheirado entrasse na jogada. Mas Franco não quis esperar, pegou essa grana do adiantamento e se mandou para Lisboa com uma pequena equipe para abrir os trabalhos - este foi seu primeiro trabalho rodado totalmente fora da Espanha e sem produtores espanhóis.

O filme, que ainda se chamava "Green Eyes of the Devil", era estrelado pela atriz francesa Janine Reynaud (à época com 37 anos), e ela levou de arrasto seu marido, o ator e diretor Michel Lemoine, que acabou integrando o elenco. Lemoine queria o papel de par romântico da própria esposa, mas este personagem ficou com o ator norte-americano Jack Taylor.


Dez dias depois, quando as filmagens seguiam a toda em Lisboa, Franco recebeu a notícia de que o sujeito que Hoven e Mannchen tinham convidado para entrar como produtor associado pulou fora. Aí bateu o desespero: aquele pouco dinheiro adiantado pelo alemão estava terminando, mas as filmagens ainda estavam longe do fim!

Foi Adrian Hoven quem teve a ideia para salvar o projeto: ele telefonou para um amigo ricaço que não entendia muito de cinema, mas estava começando a fazer seus primeiros investimentos na área; escondeu o "pequeno detalhe" de estarem com a grana terminando, e convidou este amigo para visitar o set em Lisboa, para ver se teria interesse em entrar como produtor associado.


O tal milionário, Pier A. Caminnecci, voou até Portugal sem levar muita fé no negócio. Mas no que bateu os olhos na estrela Janine Reynaud, ficou perdidamente apaixonado! E foi isso que salvou o projeto do cancelamento: Caminnecci e Janine iniciaram um caso por baixo dos panos, Lemoine ficou quietinho porque somente assim terminariam o filme, e todo mundo ficou feliz - principalmente Jess Franco!

"Ele [Caminnecci] não estava interessado no filme, mas na estrela. E quando eles começaram a ter um caso, eu consegui dinheiro não só para terminar as filmagens, mas também para lançar e promover o filme nos Estados Unidos", lembrou o diretor, numa entrevista ao livro "Perverse Titillation: The Exploitation Cinema of Italy, Spain and France", de Danny Shipka.


Depois que Caminnecci assumiu a produção e injetou bastante dinheiro, tudo ficou maior e melhor do que como estava originalmente concebido, incluindo os figurinos (agora assinados pelo famosíssimo estilista alemão Karl Lagerfeld!) e a trilha sonora (agora composta e executada por um famoso pianista clássico da época, o austríaco Friedrich Gulda). Foi possível até filmar algumas cenas em Berlim, que nem estavam no cronograma oficial!

Assim, "Green Eyes of the Devil" foi para o saco e o projeto de horror convencional que Franco pretendia fazer tornou-se NECRONOMICON, um filme completamente diferente, moderno, não-linear e com toques de surrealismo à la Luis Buñuel, que mistura sonhos, alucinações e delírios, tudo isso ligado por um mínimo fio condutor que faz pouco ou nenhum sentido. Enfim, aquela mistura de "filme de arte cabeça" com erotismo e perversão que costumava confundir - e ao mesmo tempo atrair - os públicos da época.


O início inclui uma bela sequência de créditos que já dá uma ideia da proposta mais classuda da coisa: os nomes dos atores e equipe técnica aparecem sobre imagens de pinturas renascentistas e barrocas (obrigado aos amigos de Facebook que tentaram me ajudar a identificar as obras!), ao som de uma trilha que começa como música clássica e depois se transforma num jazz típico do período.

Em seguida, confirmando o clima de ruptura, o tom de NECRONOMICON muda completamente das pinturas clássicas para uma exibição de sadomasoquismo (!!!). Na primeira cena do filme, estamos numa sala escura com dois prisioneiros vestindo farrapos, um homem e uma garota, ambos acorrentados em cruzes de madeira. Pelos seus ferimentos ensanguentados, ambos vêm sendo torturados há um bom tempo.


É quando entra em cena a estrela do filme, a ruiva Janine Reynaud, vestida com figurino militar decotado, longas botas de couro e segurando um chicotinho numa das mãos, já antecipando sádicas personagens femininas como a Ilsa de Dyanne Thorne - que apareceu em "Ilsa, A Guardiã Perversa da SS" (1975), de Don Edmonds, quase 10 anos DEPOIS!

A torturadora começa a fazer seu trabalho, machucando os dois prisioneiros, até que pinta um clima erótico com o homem amarrado. Ela se insinua, baixa as calças dele, começa a roçar seu corpo no dele, lambe o sangue que sai de um ferimento, abre (mais) a própria blusa e, quando parece que vai se entregar sexualmente ao rapaz, o ritual termina com a torturadora puxando um punhal e matando o prisioneiro.


Aí pessoas aplaudem, as luzes se acendem, e descobrimos que essa longa introdução era apenas um bizarro show de S&M realizado no palco de um clube para ricaços degenerados (ah, os anos 60...). Ninguém sofreu nem morreu de verdade, como vemos quando o ator que interpreta o prisioneiro assassinado levanta a cabeça e agradece os aplausos. (Franco faria uma cena idêntica em "O Exorcista Diabólico", de 1974.)

A torturadora de mentirinha é uma atriz chamada Lorna Green, que está saindo com seu empresário e diretor do espetáculo, Bill Mulligan (Jack Taylor, em sua primeira parceria com Franco). Na "vida real", Lorna não é muito diferente da personagem que interpreta nos palcos, e também se revela um furacão sexual aberta às mais variadas experiências.


Já seu companheiro não parece tão interessado quanto antes, e inclusive deixa a garota na mão mesmo depois que ela se insinua com um longo striptease na volta para casa. Isso acaba levando Lorna a uma série de aventuras sexuais pela cidade, e encontros e desencontros com misteriosos personagens (homens e mulheres), em cenas que podem ou não ser apenas sonhos e/ou delírios da protagonista - e o filme não se preocupa em explicar direitinho onde começa e termina a "realidade".

Primeiro, diante da recusa de sexo por parte de Bill, vemos Lorna vestir um deslumbrante vestido vermelho hiper-ultra-mega decotado e sair pelas ruas desertas de Lisboa, chegando a um bar muito suspeito onde os garçons atendem os clientes completamente nus! Ali está o Almirante Kapp (Howard Vernon), que logo é seduzido pela moça. Quando eles estão na cama prestes a transar, Lorna mata o amante enfiando uma longa agulha no seu olho!


No dia seguinte, a garota acorda na cama ao lado de Bill, certa de que foi tudo um pesadelo. Só que a primeira coisa que o casal encontra ao sair na rua é o velório de uma importante figura pública, um estimado almirante que foi assassinado na noite anterior. Curiosa, Lorna tira o véu que cobre o finado no caixão e reconhece o homem que matou no "pesadelo" da noite anterior - a longa agulha ainda enfiado no seu olho!

A partir daqui, NECRONOMICON se desenvolve de maneira caótica, seguindo este fiapo narrativo (Lorna assombrada por pesadelos e alucinações que talvez sejam reais), mas sempre deixando o espectador com muito mais perguntas do que respostas.


Franco e os diretores de fotografia Jorge Herrero e Franz Xaver Lederle dão apenas algumas pistas de quando Lorna está sonhando ou vivenciando uma alucinação: as cenas "oníricas" foram filmadas com um visual diferente, através de filtros, como se a lente da câmera estivesse embaçada (passando a ideia de imagem borrada, como num sonho).

Só que à medida que a trama vai ficando mais e mais episódica e surreal, o espectador se sente tão perdido quanto a própria Lorna, e já não consegue identificar com tanta facilidade quando a personagem está sonhando ou acordada. Até porque, mesmo tratando de sonhos e pesadelos, a maior parte do filme se passa em plena luz do dia.


Por exemplo, quando Lorna e Bill vão a uma festinha de artistas e intelectuais (um deles interpretado pelo produtor Caminnecci), e todos tomam LSD, segue-se uma sequência de bizarrias que parece até um dos pesadelos/delírios da garota, mas é assustadoramente "real" - incluindo um anão vestido de cachorro, uma lagartixa caminhando pelas costas nuas de uma garota, um cãozinho de brinquedo "latindo" e um princípio de sexo grupal com Lorna!

Mais adiante, a protagonista leva uma bela loira para um castelo à beira-mar. As duas acabam numa sala cheia de manequins que, subitamente, adquirem vida (!!!) e atacam a loira, antes de a própria Lorna matá-la a punhaladas. É uma imagem perturbadora, e filmada dez anos antes do clássico com manequins assassinos "Armadilha para Turistas", de David Schmoeller!


Por tudo isso, eu até entendo porque um amigo que viu NECRONOMICON após minha insistência comentou, impressionado: "Parece até um filme do David Lynch". Ele só esqueceu que Franco fez o filme pelo menos 25 anos antes de esse "estilo Lynch de cinema" sequer existir, ou virar moda!

E acredite: o meu resumo da trama do filme faz muito mais sentido do que o próprio filme em si! A narrativa é muito desconjuntada para que o espectador identifique um fio narrativo na primeira assistida; inclusive eu lembro de ter olhado para o display do DVD, quando vi NECRONOMICON pela primeira vez, e percebi que meia hora já tinha passado e eu ainda não fazia nenhuma ideia de sobre o quê exatamente era aquele filme!


No fim, o espectador fica cheio de perguntas sem respostas: Seria Lorna uma súcubo, demônio que assume a forma feminina para seduzir e matar homens? Ou uma artista tão boa que deixou-se afetar pelo seu número sadomasoquista, e começou a perder a noção entre real e imaginário (tipo um "Cisne Negro" feito 40 anos antes)? Ou é simplesmente uma esquizofrênica, que leva vida dupla? Ou será que ela é manipulada/controlada por alguém, seja hipnoticamente ou de forma sobrenatural? Ou quem sabe é tudo um plano de Bill para enlouquecer a namorada, com objetivos nunca bem esclarecidos? E por que tantos personagens surgem subitamente dizendo que conheceram Lorna "antes", mas ela não se lembra deles?

A única certeza é que tudo parece ter relação com um homem misterioso que aparentemente controla Lorna de alguma maneira (telepaticamente?). Este sujeito ou entidade (será o Diabo?) é interpretado, ironicamente, pelo marido traído Michel Lemoine, cuja imagem, em algumas cenas, aparece sobreposta à da garota, acentuando o seu domínio sobre Lorna.


(SPOILERS) Uma das principais pistas que o filme dá para a resolução dos seus próprios mistérios, e para a relação entre Lorna e o tal homem misterioso, é quando Bill conta à garota a lenda sobre uma súcubo que assumiu a forma humana, mas acabou se esquecendo da sua verdadeira origem. Assim, ela se casa com um príncipe e manda construir um castelo cujo projeto tem na memória, mas não lembra onde o viu. Quando a construção fica pronta, ela mata o príncipe sem nenhum motivo, como se estivesse possuída, e então lembra onde tinha visto um castelo parecido antes: era o Castelo de Lúcifer, no Inferno! O fato de o passado de Lorna também ser um mistério parece indicar que ela própria é um súcubo, ou quem sabe até a garota da lenda contada por Bill! (FIM DOS SPOILERS)


A coisa fica tão no ar ao final que, quando NECRONOMICON estreou na Itália (com o título alterado para "Delirium"), um conhecido nosso chamado Bruno Mattei foi chamado pelo distribuidor italiano para reeditar o filme e até rodar uma nova cena final que desse algum tipo de conclusão à história. Assim, os italianos inventaram um desfecho em que se assume que Lorna é uma espécie de demônio!

Este final alternativo é até bem impactante, mas não tem absolutamente nada a ver com Franco: uma dublê de Janine Reynaud vira para a câmera, diz "Agora eu sei quem sou" e revela a imagem de uma caveira pintada sobre a sua verdadeira face; logo depois, comete suicídio atirando-se de um penhasco (imagens abaixo), e aparece uma citação de Balzac.


Desconsiderando essa conclusão alternativa italiana, é inútil pensar muito nos "mistérios" ou elaborar complicadas teorias para respondê-los. Primeiro porque não faz diferença, e o filme funciona muito bem sem entregar essas respostas. E depois porque o próprio Jess assumiu que NECRONOMICON foi filmado sem roteiro, e o pequeno argumento que ele tinha elaborado para o velho "Green Eyes of the Devil" foi sendo gradativamente abandonado ao longo das filmagens.

O processo era mais ou menos assim: toda manhã, Franco encontrava o astro Jack Taylor no café da manhã do hotel e lhe entregava uma nova página de diálogos que tinha escrito durante a noite para filmar naquele dia (!!!), e Taylor então traduzia as anotações para o inglês! O produtor Caminnecci também deu vários pitacos e, no fim, acabou ganhando sozinho o crédito pelo roteiro (o que passa longe da realidade).


Franco já vinha fugindo da estrutura mais clássica dos seus primeiros filmes desde "Miss Muerte", mas NECRONOMICON é completamente diferente de tudo que ele fez antes. A narrativa não-linear lembra uma longa viagem de ácido da protagonista, com pouquíssimos diálogos e praticamente sem nenhum roteiro.

"Demorou um tempo para eu perceber que estava livre, porque eu não costumava ser livre", disse Jess numa entrevista, referindo-se à sua trajetória como cineasta censurado na Espanha. "Quando eu tomei consciência dessa liberdade, decidi adotar uma nova abordagem, diferente do terror tradicional. NECRONOMICON foi a primeira oportunidade que eu tive de fazer um filme do jeito que eu queria".


Inclusive a narrativa não-linear do filme lembra muito os diretores preferidos de Franco à época, Jean-Luc Godard e Michelangelo Antonioni. Dá até para fazer uma comparação entre NECRONOMICON e "Blow Up - Depois Daquele Beijo", dirigido por Antonioni no ano anterior (1966), que também estava menos preocupado em contar uma história de mistério e mais em retratar o cenário da contra-cultura na Londres da época.

É o mesmo que Jess faz aqui, ao retratar uma Europa semi-decadente em que a burguesia se diverte em clubes de S&M e festinhas de adultos regadas a drogas, inclusive citando abertamente nomes de artistas (músicos, cineastas...), entre cenas de sexo representando tabus ainda pouco vistos no cinema comercial, principalmente a representação de sadomasoquismo.


Os diálogos seguem essa linha e, ao invés de explicar quem são os personagens e suas motivações, apenas desfilam as principais referências do diretor ao escrever e dirigir o filme, de certa forma fazendo um registro do cenário cultural da época (alguns nomes eu tive até que pesquisar no Google para saber quem eram!)

Numa das cenas, o personagem de Howard Vernon diz uma palavra e Lorna responde com a primeira coisa que lhe vem à mente:
- "Justine"?
- Amor.
- Amor?
- Carne.
- Passado?
- Marquês de Sade.
- Religião?
- Gomorra. Carne. Sade.
- Kafka?
- Portão do castelo.
- Hitchcock?
- Olho.
- Caldwell?
- Assassinato.



Depois, quando Bill conversa com uma garota num clube, o diálogo analisa artistas da época e o quanto o que parecia moderno na semana anterior já é considerado "demodê" por um público ávido por novidades:
- Stockhausen?
- Ultrapassado.
- Calder?
- Ultrapassado.
- Pop art?
- Ainda mais ultrapassado.
- Rolling Stones?
- Datado, quase ultrapassado.
- E o que não é ultrapassado?
- Palestrina, Goethe, Ahmad Jamal, The Four Tops, Cortázar, Hohlbein...
- Muito bem. E quanto a filmes, que você vê depois que foram filmados?
- Buñuel, Fritz Lang ou Godard não estão datados. Ontem, eles fizeram filmes para amanhã, e a cada dia nós os entendemos melhor.



Mas é possível encarar NECRONOMICON mesmo sem estar consciente dessa batelada de referências? Com certeza! E nem é preciso assisti-lo com uma enciclopédia de arte (ou a janelinha do Google aberta) do lado com medo de perder alguma coisa importante, pois o que vale, no final, é o clima de delírio e de bizarrice que Franco consegue criar - mais ou menos como os últimos filmes de David Lynch pós-"Cidade dos Sonhos".

Inclusive é possível que este seja um dos trabalhos mais lindos que Jess filmou, graças à produção mais caprichada do que a sua média de baixíssimo orçamento. Tem uma fantástica cena de sexo filmada com um aquário bem na frente da câmera, e o casal de amantes ao fundo lentamente entrando no foco. As ruas de Lisboa também aparecem ameaçadoramente desertas, enquanto a bela Torre de Belém (construída às margens do Rio Tejo no século 15, e hoje um importante ponto turístico da cidade) assume o papel do castelo dos sonhos de Lorna.


E o que o "Necronomicon" tem a ver com o filme, afinal? Bem, os fãs de H.P. Lovecraft certamente ficarão desapontados ao descobrir que não há nenhuma menção a este famoso livro místico fictício inventado por ele, e que aparece em diversos contos do autor.

A justificativa para o título inclusive é surreal: Franco jura que, durante uma festinha na casa de Caminnecci, encontrou uma cópia do VERDADEIRO Necronomicon na estante do milionário! Ele inclusive teria folheado o livro proibido e tirado várias ideias de imagens bizarras para o filme, ou pelo menos assim reza a lenda. O certo, no entanto, é que o título não significa porcaria nenhuma para a trama.


No fim, Caminnecci voltou para os Estados Unidos como o principal "dono" do filme (dada a quantidade de dinheiro que investiu nele), levando a montagem original de Franco debaixo do braço.

Esta versão estreou nos cinemas de Berlim em 1968; depois, o produtor reeditou-a do seu jeito, cortando algumas partes que não gostava, para o lançamento nos cinemas norte-americanos (que aconteceu no simbólico ano de 1969!).


Ele alterou o título para "Succubus" (comprovando que a personagem de Lorna seria o tal demônio feminino), e elaborou uma esperta campanha de marketing que mirava não nos fãs de horror que por ventura tinham visto algum dos trabalhos anteriores de Jess Franco, mas sim no público "cabeça" que curtia filmes de arte - inclusive comparando a obra com sucessos europeus tipo "A Doce Vida" e "Boccaccio '70"!

Sem essa campanha, NECRONOMICON provavelmente não teria sido o sucesso que foi, já que nem Franco nem Mannchen tinham grana para bancar um lançamento decente e com tamanha publicidade.

Esperto, Caminnecci criou diversos gimmicks para promover a obra, como divulgar um número de telefone para o espectador ligar se quisesse saber o que era um súcubo (veja anúncio da época ao lado)!

As principais revistas masculinas ianques foram na onda e publicaram reportagens de página inteira sobre o filme, dizendo que ele fazia produções eróticas polêmicas da época parecerem produções da Disney.


Também divulgaram bastante a estrela que enlouqueceu o produtor, Janine Reynaud. Apesar disso, a carreira da atriz não decolou, e ela sumiu do mapa em seguida (fez um pequeno papel em "Blindman" (1971) de Ferdinando Baldi.

O problema é que NECRONOMICON enfocava vários temas bem fortes, mesmo para tempos de revolução sexual, tipo sadomasoquismo e lesbianismo. Além disso, a mistura de "filme cabeça" com horror sexploitation confundiu os censores, que não conseguiam definir se era arte mesmo ou apenas pornografia barata. Acabou que eles tascaram uma certificação X nos Estados Unidos (a mesma dos pornôs, embora o filme não tenha cenas de sexo explícito), devido ao que classificaram como "forte teor sexual".


Numa entrevista ao livro "Obsession: The Films of Jess Franco", o astro Jack Taylor lembra a polêmica provocada por NECRONOMICON na época do lançamento: "Hoje parece filme infantil, mas na época foi um escândalo, principalmente nos Estados Unidos! Eu lembro que eles não podiam fazer publicidade do filme nos jornais, e até o denunciaram em igrejas como sendo imoral, algo absolutamente ridículo. E ele nunca foi exibido [nos cinemas] na Espanha".

Mesmo assim, a obra teve grande repercussão e até hoje é considerada um dos maiores sucessos de bilheteria da filmografia do diretor. Mesmo com os problemas financeiros, o suporte de Caminnecci também tornou NECRONOMICON a produção mais cara que Franco dirigiu até 1987 (20 anos depois!!!), quando ele finalmente obteve um orçamento maior para dirigir "Sem Face".


Graças ao produtor, também, NECRONOMICON ganhou uma exibição especial fora de competição no Festival de Berlim de 1968. E foi ali que um grande diretor de cinema chamado Fritz Lang (sim, "aquele" Fritz Lang) assistiu o filme, declarando depois que era uma obra-prima do cinema erótico, ou pelo menos assim reza a lenda.

Por outro lado, o ator Howard Vernon contou uma outra versão em entrevista ao livro "Obsession: The Films of Jess Franco": "Fritz Lang tornou-se um amigo próximo depois que eu trabalhei com ele em 'Os Mil Olhos do Dr. Mabuse' (1960). Ele me falou que viu no jornal o anúncio de um novo filme comigo no elenco, e por isso foi assistir. Era NECRONOMICON, e depois ele me disse que, já nos primeiros minutos, quando percebeu que era um filme erótico, ficou chocado, porque ele odiava filmes eróticos. Mesmo assim, pediu que eu falasse a Franco que ele não apenas tinha assistido até o final, mas também tinha gostado muito, porque a nudez não era mostrada como um passeio pelo açougue, e sim tratada com erotismo e significado. Claro que quando eu disse isso a Jess, ele ficou sem palavras de tanta felicidade!".


De qualquer maneira, seja real ou inventada mais essa história sobre NECRONOMICON, o certo é que a obra representa um divisor de águas na carreira de Jess Franco, e todos os seus filmes a partir daqui teriam esse visual meio doidão, como se o diretor estivesse filmando seus próprios delírios e sonhos (ou pesadelos).

As histórias começaram a ficar cada vez mais simplórias (ou mesmo inexistentes), e narradas através das imagens e da música, e não dos diálogos. Sem NECRONOMICON, coisas como "A Virgin Among the Living Dead" e "Vampyros Lesbos" dificilmente existiriam. Não por acaso, personagens femininas chamadas "Lorna" reapareceriam com frequência nos filmes do diretor a partir daqui.


Assim, se você quiser descobrir como surgiu aquele Jess Franco que ficou popular, o diretor amado e odiado por seus filmes doidões cheios de erotismo e imagens bizarras, não deixe de ver NECRONOMICON. Ainda que a mistura de surrealismo com erotismo leve (o diretor faria coisa bem pior depois) não seja para todos os públicos, é uma bela maneira de se iniciar nesta fase mais artístico-experimental da obra de Franco.

E, ao final, nem interessa se as várias perguntas deixadas pela odisseia de Lorna ficaram sem respostas, ou se o filme como um todo não faz sentido, já que cenas como a da festinha regada a drogas e a do ataque dos manequins assassinos continuarão assombrando o espectador durante muito tempo.


Com o sucesso do filme, e a moral adquirida com a suposta declaração elogiosa de Fritz Lang, o trio Franco, Hoven e Caminnacci embarcaram em um novo projeto juntos, rodando dois thrillers de espionagem filmados ao mesmo tempo: "Sadisterotica" e "Bésame Monstruo", que não foram tão bem-sucedidos. A parceria se desfez.

Foi quando o produtor britânico Harry Alan Towers, que adorou NECRONOMICON, propôs uma parceria que acabou se mostrando bastante vantajosa para Jess: pelos próximos dois anos, entre 1968 e 1970, ele dirigiu nove filmes para Towers, com orçamentos muito melhores do que aqueles que tinha na Espanha, e a possibilidade de contratar atores famosos, como Jack Palance, Christopher Lee e  Klaus Kinski.

Mas essa é uma outra história...

PS: Franco filmou uma história muito parecida, sobre uma dançarina atormentada por pesadelos que se tornam realidade, no posterior "Pesadelos Noturnos" (1970).


Trailer de NECRONOMICON



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Necronomicon / Succubus (1967, Alemanha)
Direção: Jess Franco
Elenco: Janine Reynaud, Jack Taylor, Howard Vernon,
Michel Lemoine, Nathalie Nord, Pier A. Caminnacci,
Adrian Hoven e Américo Coimbra.



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