VOLUNTÁRIOS DA FUZARCA (1985)
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VOLUNTÁRIOS DA FUZARCA (1985)



Nos comentários recebidos sobre a atualização anterior, "A Última Festa de Solteiro", muita gente alegava que aquela era a única comédia decente que Tom Hanks havia feito. Lembrei, então, de um trabalho posterior do ator, e que ficou esquecido na sua trajetória rumo ao sucesso - uma espécie de nota de rodapé em sua filmografia. Trata-se de VOLUNTÁRIOS DA FUZARCA, uma comédia... digamos... esquisita.

Não sei exatamente o porquê de VOLUNTÁRIOS DA FUZARCA ter acabado na obscuridade, ainda mais considerando a quantidade de filmes fracos que Hanks protagonizou nessa primeira fase da sua carreira (como "O Homem do Sapato Vermelho", "Um Dia a Casa Cai" e "Dragnet - Desafiando o Perigo"). Mas tenho uma teoria: este talvez seja um dos únicos filmes do astro em que ele interpreta um sujeito REALMENTE mau caráter.


Quem conhece um mínimo da filmografia de Hanks já deve ter percebido que ele geralmente só faz caras bonzinhos, às vezes tão bonzinhos que chega a encher o saco. E mesmo quando faz papel de vilão - como em "Estrada Para a Perdição" e "Matadores de Velhinhas" -, são ou vilões "bonzinhos" e de bom coração, ou caricaturas à beira do desenho animado.

Já o playboy Lawrence Whatley Bourne III, que ele interpreta em VOLUNTÁRIOS DA FUZARCA, certamente não é um exemplo a ser seguido, e chega a ser até estranho ver Hanks, esse cara sempre tão associado ao bom-mocismo, na pele de um personagem cheio de defeitos e desvios de caráter.


Antes de mais nada, uma observação sobre o título nacional: é fácil um filme cair na obscuridade quando o título não ajuda, e vamos combinar que dá vontade de esganar o sujeito que inventou "Voluntários DA FUZARCA" para um filme que se chama apenas "Voluntários" no original. Lá em Portugal, a tradução foi muito mais inspirada, "Voluntários à Força".

Agora, quando você traduz o título e usa uma expressão do arco-da-velha como "fuzarca" (segundo o dicionário, "farra ruidosa, desordem, confusão"), está pedindo para que o público saia correndo. Afinal, quantas pessoas nascidas depois de 1950 sabem o que diabos é uma "fuzarca"?


Já os "voluntários" em questão são os membros do Peace Corps, criado pelo presidente John F. Kennedy em 1961. Era um programa em que jovens estudantes se voluntariavam (ahá!) para viajar até países estrangeiros com o objetivo de ajudar pessoas necessitadas.

VOLUNTÁRIOS DA FUZARCA se passa no início da década de 60, conforme anunciam os belíssimos créditos iniciais: uma montagem de imagens de arquivo da época, em que vemos gente como Doris Day, Rock Hudson, Kennedy e Marilyn Monroe, numa sessão de nostalgia regada a "Blue Moon", na voz da banda The Marcels.


Em seguida, vemos nosso "herói" Bourne III e sua namorada (Jude Mussetter) como as únicas pessoas brancas numa mesa de pôquer repleta de negros ameaçadores e estereotipados. Viciado em jogo e blefador nato, Lawrence fatura uma bolada, com a qual paga parte da sua dívida com o dono quase mafioso do local. Como ainda deve dinheiro, o rapaz convence seu credor a apostar toda aquela grana num jogo de basquete.

Após uma noite de sexo selvagem com a namorada no dormitório da faculdade (e essa deve ser uma das únicas vezes em que Tom Hanks aparece transando num filme, embora nada seja mostrado, apenas escutamos a barulheira), nosso herói se lembra que é o dia da sua formatura. Mas está mais interessado no resultado do jogo em que apostou a própria vida. E, claro, seu time perde, deixando-lhe automaticamente com uma exorbitante dívida de milhares de dólares que ele deve pagar antes da meia-noite - ou morrer.


Lawrence até tenta conseguir um empréstimo com o pai milionário, mas ele nega. Resta-lhe, então, uma única alternativa para salvar o pescoço: assumir a identidade de seu colega de quarto, Kent (Xander Berkeley, quando ainda tinha cabelo), e embarcar num avião do Peace Corps, como "voluntário", rumo à Tailândia! Na troca, Kent fica com a namorada e o carrão do colega.

O playboyzinho percebe já no início do voo a fria em que foi se meter, ao conhecer voluntários irritantemente idealistas como "Tom Tuttle from Tacoma, Washington" (John Candy, ainda na sua fase de figurante). Mesmo assim, encontra tempo para tentar seduzir Beth (Rita Wilson), que inicialmente pensa que ele é Kent e por coincidência trocava correspondências com o colega de quarto. Revelada a troca de identidades, Lawrence fica queimado com a moça, mas não desiste de passar o restante do filme tentando seduzi-la.


Pois Lawrence, "Tom Tuttle from Tacoma, Washington" (ele se apresenta assim toda vez, e são diversas ao longo do filme) e Beth são designados para a mesma aldeia pobre da Tailândia.

E enquanto os dois voluntários de verdade tentam ajudar os moradores locais, nosso herói está muito ocupado pervertendo-os: primeiro os ensina a jogar black jack com apostas em galinhas, porcos e frutas; depois, constrói um bar completo na aldeia, o "Lawrence's"! Numa frase genial, ele resume todo o seu mau-caratismo: "Não é que eu não possa ajudar essas pessoas. Eu simplesmente não quero ajudá-las!".


Não demora para ele ser contatado pelo bandidão Chung Mee (Ernest Harada), o maior traficante de ópio do país, que precisa que uma ponte seja construída sobre o rio ao lado da aldeia dos "voluntários" para facilitar o transporte das drogas. Como ele promete dinheiro e uma passagem de volta aos Estados Unidos, Lawrence se dedica a acelerar a construção da estrutura, surpreendendo os colegas com sua súbita mudança de comportamento.

É necessário situar-se no contexto histórico, social e político do mundo nos anos 1960 para entender melhor a trama de VOLUNTÁRIOS DA FUZARCA. Afinal, não faltam piadas sobre "vilões" comunistas, especialmente quando "Tom Tuttle from Tacoma, Washington" é aprisionado pelo exército local e sofre lavagem cerebral para odiar os "ianques capitalistas". Considerando que tudo isso perdeu o sentido depois do fim da Guerra Fria, as novas gerações provavelmente não vão entender a maior parte do filme sem antes fazer uma pequena pesquisa de história.


Durante a década de 80, Tom Hanks fez algumas comédias bem divertidas, como "Splash", "A Última Festa de Solteiro", "Quero Ser Grande" e "Meus Vizinhos São um Terror". Mas, vamos combinar, as outras comédias que ele estrelou no período eram ruins demais e só rendiam mesmo risos amarelos (ou alguém aqui realmente gosta de "Dragnet" ou "Uma Dupla Quase Perfeita"?).

Por isso, é surpreendente como o ator está bem interpretando um personagem imperfeito e cara-de-pau em VOLUNTÁRIOS DA FUZARCA. Ele tem tiradas hilárias, e, o que é melhor nesses tempos politicamente corretos, não passa por nenhum processo de "bom-mocismo" no final. Tudo bem, ele até realizará alguns atos de heroísmo (como resgatar Beth, sequestrada pelos vilões). Mas não recebe nenhuma lição de moral, não "aprende" nada e termina o filme tão mau caráter quanto começou, inclusive anunciando seus planos de construir um cassino na pequena aldeia e promover apostas em corridas de elefantes!


Particularmente, gosto muito desse filme e o incluiria tranquilamente numa relação dos meus trabalhos preferidos do Tom Hanks.

Porém, se ele está ótimo, o mesmo não se pode dizer de John Candy. Aliás, nada como o tempo para fazer justiça. Quando eu era moleque, eu adorava as comédias estreladas por Candy, como "As Grandes Férias" e "Quem É Harry Crumb?"; só agora, depois de "velho" e revendo esses filmes todos, percebo como o gorducho (falecido em 1994) era mala-sem-alça e sem graça - uma espécie de Jack Black dos anos 80.

Aqui, Candy felizmente aparece pouco, mas consegue irritar sempre que entra em cena pela sua interpretação caricatural e exagerada (embora a piada envolvendo sua lavagem cerebral quase instantânea seja bem divertida).


Já Rita Wilson é uma mocinha apagada, mantendo a rotina "garota que odeia o protagonista no começo mas aprende a amá-lo da metade para o final do filme". O mais interessante de sua participação em VOLUNTÁRIOS DA FUZARCA foi o fato de Hanks ter se apaixonado por ela de verdade: eles começaram a namorar, casaram em 1988 e ainda estão juntinhos, comprovando como Tom Hanks é um bom moço também na vida real!

VOLUNTÁRIOS DA FUZARCA ainda tem duas participações ilustres e muito engraçadas: a primeira é Gedde Watanabe ("Vamp - A Noite dos Vampiros"), no papel do único rapaz da vila que fala inglês, e que logo se transforma em parceiro de Lawrence em suas presepadas; a outra é do astro de "Trancers" Tim Thomerson, que rouba todas as cenas em que aparece.


Thomerson interpreta John Reynolds, o piloto de helicóptero que transporta os voluntários do Peace Corps, e é mostrado como um sujeito legal e simpaticão no começo do filme. À medida que a história progride, porém, ele se revela um louco de pedra que vive conversando com sua faca (a quem chama de "Mike"), e que fica obcecado por Beth.

Outra personagem hilária é Lucille, a sensual e perigosa guarda-costas do traficante Chung Mee. Interpretada pela bela Shakti Chen ("O Rapto do Menino Dourado"), ela tem unhas compridas e letais, com as quais tenta matar o herói em cena divertidíssima.


O diretor no comando de toda essa "fuzarca" (pffff!) é Nicholas Meyer, um nome praticamente desconhecido para a maioria dos cinéfilos, e provavelmente mais lembrado pelos "trekkers" como o cara que dirigiu dois dos melhores longas baseados no seriado: "Jornada nas Estrelas 2 - A Ira de Khan" e "Jornada nas Estrelas 6 - A Terra Desconhecida" (este seu último filme para o cinema, feito em 1991).

Na verdade, Capitão Kirk e cia. à parte (e eu confesso que nunca vi nenhum "Jornada nas Estrelas"), Meyer tem uma filmografia bem decente que merece ser (re)descoberta: além desse interessante VOLUNTÁRIOS DA FUZARCA, ele também fez os ótimos "Um Século em 43 Minutos" e "The Day After - O Dia Seguinte", e o eficiente "Companhia de Assassinos".

Considerando que esta é a sua única comédia, até que o sujeito se saiu muito bem - dá até pra lamentar o fato de ele não ter se aventurado mais vezes no gênero. Embora o filme tenha algumas tiradas bem estúpidas, Meyer nunca ofende a inteligência do espectador, e o resultado é uma comédia em que até as piadas mais bestas tem um quê de sofisticação (algo difícil de encontrar, por exemplo, nos filmes recentes de Adam Sandler e Ben Stiller).


Já o roteiro é assinado pela dupla Ken Levine e David Isaacs, conhecidos roteiristas de seriados de TV e que geralmente trabalhavam juntos. Eles escreveram alguns diálogos divertidíssimos, como a conversa de Lawrence com Chung Mee:

- O ópio é o meu negócio. A ponte significa mais tráfico. Mais tráfico significa mais dinheiro. Mais dinheiro significa mais poder.
- Certo, certo. E vai ter espaço nesse esquema para mim?
- A rapidez é importante nos negócios. Tempo é dinheiro.
- Mas você disse que ópio é dinheiro!
- Dinheiro é dinheiro.
- Bem, e o que é o tempo mesmo?



Outro diálogo hilário acontece entre Lawrence e o seu pai, quando o ricaço lamenta as dívidas de jogo do filho:

- Você tem decepcionado a mim e à sua mãe desde o dia em que nós te tiramos do orfanato.
- Pare com isso, papai! Eu sei que não sou adotado!
- Sim, mas por favor, permita-me essa pequena fantasia!



O roteiro também brinca o tempo todo com o próprio cinema, satirizando cenas famosas de filmes famosos. O "Lawrence's", inaugurado pelo herói no centro da aldeia, é uma referência ao "Rick's" de Humphrey Bogart em "Casablanca". Lawrence até tem uma cena romântica com Beth ao som da eterna música de "Casablanca", "As Time Goes By", dedilhada por um nativo na cítara!

Também há brincadeiras explícitas com "A Ponte do Rio Kwai", "O Mágico de Oz" e "Lawrence da Arábia" - piadas estas que perdem todo o sentido para o público de hoje, e que só serão compreendidas por cinéfilos das antigas.


O mais curioso e divertido de VOLUNTÁRIOS DA FUZARCA é como o filme mistura piadas convencionais (diálogos e situações-pastelão típicas do gênero) com umas tiradas nonsense no estilo do que Jim Abrahams, David e Jerry Zucker faziam na época, em produções como "Apertem os Cintos, O Piloto Sumiu!" e "Top Secret".

Há uma cena, por exemplo, em que os personagens assumem que estão num filme ao ler a legenda em inglês para compreender um diálogo em tailandês. Essa piada, por sinal, foi incluída pelo diretor, e enfureceu os roteiristas: Ken Levine chegou a queixar-se dela em seu blog, dizendo que "foi a cena que estragou o filme"!


Em outro momento, um mapa na tela mostra a perseguição de Lawrence pelos gângsters para quem ele deve dinheiro... até que o carro dirigido pelo herói atravessa e rasga o mapa como se ele fosse algo físico!

A própria ponte construída pelos voluntários na aldeia é um absurdo: trata-se de uma réplica, em madeira, da famosa Brooklyn Bridge, em Nova York! E, o que é mais curioso, o negócio foi construído DE VERDADE, inflacionando o orçamento do filme. Se fosse hoje, fariam alguma monstruosidade em CGI e pronto.


VOLUNTÁRIOS DA FUZARCA não foi exatamente um sucesso de bilheteria (custou 25 milhões e faturou "apenas" 19 milhões). Se o público não comprou a ideia, os críticos se dividiram entre quem gostou e quem odiou totalmente. Mas o relativo fracasso não arranhou nem a carreira de Hanks, nem a de Candy.

Os realizadores também tiveram conflitos com Robert Sargent Shriver Jr. diretor do Peace Corps na época da produção. Ele leu o roteiro e ficou enfurecido, alegando que desrespeitava o trabalho da organização e "cuspia na bandeira americana" (patriotismo realmente não é o forte do filme). Sargent chegou a sugerir várias mudanças e alterações no roteiro, mas elas não foram sequer consideradas; e, quando o filme finalmente estreou, o briguento já não era mais diretor da organização para poder questionar nada.


Hoje, eu diria que VOLUNTÁRIOS DA FUZARCA é uma comédia a ser conhecida, por todos os pontos positivos que eu já elenquei e por tantos outros que o espaço e o medo de soltar spoilers não me permitem citar. Mas principalmente por ser uma comédia que é inteligente mesmo em suas piadas mais idiotas, como a dos personagens lendo as legendas (piada copiada sem a menor vergonha na cara no terrível "Austin Powers em O Homem do Membro de Ouro").

E ainda mais recomendadíssima por trazer um Tom Hanks bem diferente do que estamos habituados a ver, menos "bom moço" e mais salafrário. Pena que o ator foi gradativamente abandonando esse tipo de personagem até se transformar num sinônimo de "cara legal" - e, consequentemente, cada vez mais chato.

PS: Olho vivo para identificar o gigantesco Professor Toru Tanaka, vilão de um sem-número de filmes de ação (brigou com Chuck Norris em "Ajuste de Contas", por exemplo), no papel de um dos homens de Chung Mee.

Trailer de VOLUNTÁRIOS DA FUZARCA



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Volunteers (1985, EUA)
Direção: Nicholas Meyer
Elenco: Tom Hanks, Rita Wilson, John Candy, Tim Thomerson,
Gedde Watanabe, George Plimpton, Ernest Harada, Xander
Berkeley, Shakti Chen e Professor Toru Tanaka.



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