Se 1970 foi o ano em que "Aeroporto" provou que era possível lucrar com a desgraça alheia, 1974 foi o grande ano do cinema-catástrofe: num curtíssimo espaço de tempo, estrearam "Inferno em Alto Mar", de Richard Lester (setembro/74), a primeira continuação de "Aeroporto", chamada AEROPORTO 75 (outubro/74, mas usando o ano de 1975 no título para não ficar datado quando lançado em outros países), "Terremoto", de Mark Robson (novembro/74), e "Inferno na Torre", de John Guillermin (dezembro/74).
Todos esses filmes levaram ao pé da letra a fórmula aprendida com "Aeroporto" alguns anos antes, de que astros famosos + grande tragédia + melodrama = sucesso de bilheteria. E coitadas das celebridades que se metiam nessas tranqueiras, gente graúda omo Walter Matthau, Ava Gardner, Steve McQueen, Fred Astaire, Paul Newman, William Holden, Richard Chamberlain, Richard Harris, Omar Sharif, David Hemmings, Anthony Hopkins, Ian Holm, etc etc etc.
No caso de AEROPORTO 75, o mais interessante é que ele não foi originalmente concebido como uma continuação. Pelo contrário: o roteirista Don Ingalls, que costumava trabalhar com seriados, tinha ideias mais humildes e apresentou seu roteiro para a divisão televisiva da Universal, como proposta para um simples filme produzido para a TV.
Só que o produtor Jennings Lang leu, gostou, e deve ter se lembrado que o "Aeroporto" original foi a maior bilheteria da Universal até então. Com cifrões nos olhos, ele deu sinal verde para transformar o outrora humilde roteiro de Ingalls em algo muito maior, rebatizando-o como continuação de "Aeroporto".
No auge da cara-de-pau, colocaram até um crédito hilário no início que diz "Inspirado no filme 'Aeroporto', que foi inspirado no livro de Arthur Hailey", associando assim uma continuação sem relação com o autor do best-seller que deu origem ao primeiro filme! (Esta mesma frase seria usada também nos filmes seguintes.)
Nenhum dos realizadores do original voltou para essa sequência - nem o produtor Ross Hunter, nem o diretor George Seaton. E o único astro do primeiro filme que reaparece é George Kennedy, repetindo o papel de Joe Patroni, embora completamente descaracterizado (conforme veremos em seguida).
Já a direção ficou a cargo de Jack Smight, que muitos cinéfilos devem lembrar como o responsável por "Harper, O Caçador de Aventuras" (1966) e "Herança Nuclear" (1977). No papel principal, sai Burt Lancaster e entra Charlton Heston, que poderia ganhar o título de "Muso do Cinema-Catástrofe" por ter sido o único astro a estrelar nada menos de cinco produções do gênero: esta, "Voo 502 em Perigo" (1972), "Terremoto" (1974), "Pânico na Multidão" (1976) e "S.O.S. Submarino Nuclear" (1978). Pelo visto, o velho Moisés gostava de uma boa tragédia...
Heston interpreta o piloto Alan Murdock, e já havia aparecido como piloto às voltas com tragédias aéreas em seu filme-catástrofe anterior, "Voo 502 em Perigo". Murdock namora a aeromoça Nancy Pryor (a finada Karen Black, comprovando aqui que tinha uma das vozes mais irritantes da história do cinema), mas foge de compromisso como o diabo da cruz. É claro que uma pequena tragédia servirá para colocar o casal nos trilhos no final.
Os caminhos dos pombinhos se separam no Aeroporto Washington Dulles International: o piloto vai para um lado, e Nancy embarca no Voo 409 da Columbia Airlines, um Boeing 747 lotado com destino a Los Angeles. A tripulação é formada pelo Capitão Stacy (Efrem Zimbalist Jr.), seu co-piloto Urias (Roy Thinnes) e pelo navegador latino Julio (Erik Estrada!).
Como este é um filme-catástrofe, e exige a inclusão de inúmeros personagens com seus próprios dramas pessoais, o avião está repleto de alguns dos mais excêntricos passageiros já vistos num filme "sério": tem três bebuns que já embarcam mamados e ainda passam o tempo inteiro atrás de goró; duas freiras, uma delas cantora; uma velhota alcoólatra; um ator que só está no voo para assistir o filme de bordo, em que ele fez uma pequena participação (o filme em questão é "American Graffiti", de George Lucas); uma veterana estrela de cinema e sua assistente, e até uma menina doente que está viajando para Los Angeles para fazer um transplante de rim, e tem as horas contadas para chegar à mesa de operação! Está bom de dramalhão ou quer mais?
Então tome mais: longe dali, um vendedor que tem uma reunião de negócios urgente freta um jatinho e encara um voo solitário com clima desfavorável. A cobiça será sua sentença de morte, pois ele sofre um ataque cardíaco durante o voo e acaba arrebentando seu jatinho no cockpit do Voo 409, abrindo um rombo na aeronave que fere gravemente o piloto e mata seus auxiliares!
E como o Capitão Stacy teve os olhos machucados na colisão e não pode pilotar às cegas, sobra para a pobre aeromoça Nancy a responsabilidade de comandar a aeronave avariada e fazer um pouso de emergência. Ah, não esqueça da pobre menina lá atrás, que tem as horas contadas para o seu transplante de rim!
No início, a corajosa aeromoça recebe instruções via rádio do seu namorado Murdock e do veterano da série "Aeroporto" Patroni. Mas a dupla logo chega à conclusão de que Nancy jamais conseguirá pousar sozinha, e resolvem pôr em prática um plano ousado: transferir um piloto "de verdade" para dentro do avião em voo, pelo rombo aberto no cockpit, usando um helicóptero!!!
AEROPORTO 75 pode até ser uma bomba como cinema (e é!), mas não tem importância: o resultado é divertidaço como entretenimento. Inclusive acho o filme muito melhor, menos sério e menos enrolado do que o original. Com meia hora a menos que "Aeroporto", a trama vai direto ao assunto (em menos de 20 minutos o avião já está no ar), e trabalha melhor os elementos de tensão e suspense. Até a tragédia da vez é bem mais interessante do que aquela enfocada no primeiro filme.
Outra diferença da "continuação" para o original é o fato de este dar mais destaque à tripulação da aeronave e aos passageiros em perigo do que à equipe em terra, ao contrário do que acontecia no filme de 1970. Na verdade, o espetáculo é todo comandado por Karen Black e pelos excêntricos passageiros que ela precisa salvar da morte quase certa; o "herói" Heston e seu sidekick George Kennedy aparecem berrando algumas ordens via rádio e só têm participação mais ativa no final - quando, claro, o piloto machão vai voluntariar-se para tentar retomar o controle do avião onde está sua namorada!
A situação evolui para uma façanha complexa: um piloto é transferido de um helicóptero para dentro do avião, pelo rombo na fuselagem, através de um cabo de aço, e com ambas as aeronaves em pleno voo!
É o tipo de cena que, mesmo com algumas trucagens visíveis (dublê substituído por boneco, filmagem em estúdio com tela projetada no fundo), deixa o espectador na ponta da cadeira, e certamente hoje seria feita de maneira pouco convincente através de computação gráfica.
O curioso é que AEROPORTO 75 foi produzido com muito menos grana que o original (US$ 4 milhões contra os 10 milhões do primeiro filme), e mesmo assim parece muito melhor produzido!
Mas as filmagens foram complicadas porque a Universal estava gravando outro filme-catástrofe (o bem mais caro "Terremoto") ao mesmo tempo, e as duas produções dividiam atores principais (Charlton Heston e George Kennedy), o mesmo diretor de fotografia (Philip H. Lathrop) e o mesmo produtor (Jennings Lang). Não foi fácil acertar os cronogramas dos "desastres", mas este aqui ficou pronto e foi lançado antes.
No fim, AEROPORTO 75 vale menos pela história e mais pelas bobagens, pelo fator trash e pelas insólitas celebridades reunidas. Uma delas é a veterana dos tempos do cinema mudo Gloria Swanson, que estreou no cinema em 1915 (!!!), e aqui parece ter a mesma função que a também veterana Helen Hayes teve em "Aeroporto"; ou seja, a de homenagear as pioneiras da sétima arte (embora dessa vez sem direito a Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante, como aconteceu no filme anterior).
O curioso é que Gloria Swanson interpreta... Gloria Swanson?!? Exato! Num curiosíssimo toque de metalinguagem, o roteiro coloca a veterana atriz como ela mesma! No filme, Gloria chega a citar celebridades de verdade com quem trabalhou, tipo o diretor Cecil B. de Mille, a atriz Carole Lombard e a cantora de ópera Grace Moore - sendo que essas duas últimas coincidentemente morreram em acidentes de avião em 1942 e 1947, e talvez até por isso tenham sido citadas.
Na época das filmagens, Gloria estava com 75 anos de idade e já não trabalhava no cinema desde 1956. O papel de velha estrela tinha sido originalmente oferecido a Greta Garbo (que, por sua vez, estava aposentada desde os anos 40), mas Greta recusou e Gloria resolveu assumir a vaga, já que não tinha nada melhor para fazer mesmo (ok, essa foi maldosa...).
Em entrevistas da época, a veterana declarou o seguinte: "Eu estava esperando que me convidassem para um filme que pudesse levar meus netos para ver, que fosse emocionante e contemporâneo, sem apelar para violência sem sentido". Hã... Dona Gloria, acho que a senhora não foi muito feliz na escolha, viu? Mas AEROPORTO 75 acabou sendo o último filme da atriz, que morreu em 1983 sem voltar a pisar num set de filmagem.
Outra veterana, que aparece interpretando a coroa bebum, é Myrna Loy. Ela também começou sua carreira nos tempos do cinema mudo, em 1925, e estava com 69 anos ao interpretar uma das passageiras de AEROPORTO 75. Depois, Myrna ainda fez mais alguns filmes (incluindo a tralha "Formigas Assassinas") antes de morrer em 1993, aos 88 anos.
Entre as presenças ilustres também está a "atriz-mirim" Linda Blair, então com 15 anos, no papel da garota doente que precisa receber um novo rim o mais rápido possível. Ela tinha recém-saído do set de "O Exorcista", e é impossível não lembrar disso quando vemos sua personagem deitada o tempo inteiro e sendo paparicada por uma das freiras a bordo - ironicamente, no seu filme anterior a personagem de Linda não tinha lá muita simpatia pelos representantes da Igreja!
Vale ressaltar que a tal freira, que fica tocando violão e cantando para a pobre Linda Blair, é interpretada pela cantora australiana Helen Reddy, aqui fazendo sua estreia no cinema. Hoje o nome talvez não seja tão conhecido, mas, na época das filmagens, Helen era conhecida como a "Rainha do Pop dos Anos 70", e inclusive havia acabado de ganhar um Grammy pelo seu hit "I Am Woman", em 1973.
Surpreendentemente, a cantora-atriz foi indicada ao Globo de Ouro de "Melhor Revelação" por sua atuação como freira em AEROPORTO 75, mas depois não fez mais nada digno de nota além de "Meu Amigo, O Dragão", em 1977. Bela revelação...
AEROPORTO 75 ainda permitiu um breve reencontro de Charlton Heston com duas atrizes com quem trabalhou anteriormente. Uma delas é Martha Scott (no papel da outra freira), com quem contracenou em "Os Dez Mandamentos" e "Ben Hur"; a outra é Linda Harrison, a gatinha que interpretou sua "namorada" Nova em "O Planeta dos Macacos" e "De Volta ao Planeta dos Macacos". Linda aparece no papel de Winnie, a assistente de Gloria Swanson, e infelizmente está vestida demais, aposentando os trajes sumários que usava lá no Planeta dos Macacos.
Por último, mas não menos importante, vale registrar as presenças dos comediantes Sid Caesar, como o ator que quer se ver no filme de bordo, e Jerry Stiller, como um dos passageiros bêbados.
Também tem algo de muito curioso em AEROPORTO 75: a trama lembra bastante um outro filme sobre tragédias aéreas que eu citei na minha resenha anterior, "Céu de Agonia", de 1960. Neste filme, é um jato militar que entra em rota de colisão com um avião comercial, mas o argumento é bem parecido.
Não sei se foi uma citação intencional ou a mais bizarra das coincidências, mas veja só que maluquice: em "Céu de Agonia", Dana Andrews interpretava o piloto do avião comercial e Efrem Zimbalist Jr. o responsável pelo jato que provocava a tragédia. Pois aqui, em AEROPORTO 75, os mesmos atores aparecem em papéis trocados: Zimbalist Jr. agora é o piloto do avião comercial ameaçado pelo jatinho pilotado por Andrews (abaixo)!
Como eu expliquei lá em cima, o roteiro de David Ingalls não foi originalmente escrito como uma continuação direta de "Aeroporto". Quando o produtor Lang teve a ideia de transformá-lo numa sequência, Ingalls foi obrigado a criar uma mínima relação que fosse com o filme de 1970. É aí que deve ter entrado o personagem de George Kennedy.
O problema é que Ingalls não respeitou as características que esse personagem (Joe Patroni) tinha em "Aeroporto", e simplesmente trocou o nome de algum outro personagem secundário do seu roteiro original. Duvida? Pois se em "Aeroporto" Patroni era o melhor mecânico da TWA, aqui ele foi misteriosamente promovido a vice-presidente de operações da Columbia Air Lines, e agora vive em Washington, não em Chicago!
Tudo bem, vai que o sujeito tenha sido promovido depois de sua façanha de desatolar o Boeing da neve no final do primeiro filme, não é mesmo? Só que aí o roteiro cria outra complicação: em "Aeroporto", Patroni era casado com uma mulher chamada Marie (interpretada por Jodean Lawrence), e dizia ter cinco filhos; aqui, ele aparece com uma nova esposa chamada Helen (interpretada por Susan Clark) e anuncia ter um único filho, Joe Jr., de 12 anos! Por sinal, esposa e filho estão no voo fatídico, dando a Patroni uma razão pessoal para impedir a tragédia desta vez.
O engraçado é que, em fóruns da internet, alguns fãs da série tentam justificar essa presepada do roteirista alegando que Patroni na verdade levava uma vida dupla, com duas esposas e dois empregos em cidades diferentes! Aham...
Enquanto "Aeroporto" foi uma das maiores bilheterias de todos os tempos, ganhou boas críticas e enganou até os membros da Academia, sendo indicado a 10 Oscars, AEROPORTO 75 já foi recebido com mais ceticismo, sem indicações ao Oscar e com críticas demolidoras.
Mesmo assim, repetiu o sucesso de bilheteria (47 milhões de dólares só nos cinemas norte-americanos), conquistando a sexta posição entre os filmes mais vistos nos EUA naquele ano, logo abaixo de "O Poderoso Chefão Parte 2" e sete posições acima de... "Chinatown", do Polanski!!!
Mas o auge do "sucesso" foi sua inclusão no clássico livro "The Fifty Worst Films of All Time" (Os 50 Piores Filmes de Todos os Tempos), de Harry Medved e Randy Dreyfuss. Graças à bem-humorada análise da dupla nesse volume, AEROPORTO 75 ganhou certa aura de filme de culto, inclusive sendo redescoberto por uma nova geração de fãs que hoje o apreciam justamente pelos seus exageros, absurdos e - por que não? - pela sua divertida ruindade.
Eu sou um desses fãs, e repito que acho esse segundo filme muito melhor e menos pomposo que o original de 1970. Tem mais ação, mais tragédia, mais suspense, mais celebridades interpretando personagens cretinos e absurdos, e não fica enrolando tanto com os encontros e desencontros dessa gente como o episódio anterior. Também tem uma direção de arte doidona, repleta de roxo e rosa-choque (imagens abaixo), como se o responsável por este departamento tivesse trabalhado sob efeito de LSD.
Principalmente, o filme parece não se levar tão a sério quanto seu antecessor: os passageiros são tão exóticos, e as situações são tão hilárias, que AEROPORTO 75 poderia muito bem ser o resultado de alguém filmando a sério o roteiro da comédia "Apertem os Cintos... O Piloto Sumiu!", do Trio ZAZ.
Fica até difícil de dissociar um filme do outro, considerando que algumas piadas hilárias de "Apertem os Cintos..." foram tiradas daqui mesmo: a clássica comédia também tem uma menina doente a bordo, que viaja para fazer um transplante de coração, e que é animada por uma aeromoça que toca violão; além disso, "Apertem os Cintos..." repete a situação da aeromoça que precisa manter o avião no piloto automático quando o voo perde sua tripulação, com a diferença de que na comédia aparece um engraçadíssimo "piloto automático inflável" para comandar o avião!
Já as cenas de ação e tensão de AEROPORTO 75 são tão boas que depois foram vendidas e reeditadas em diversas outras produções, incluindo um episódio do velho seriado do Incrível Hulk, em 1978, e até um filme recente, "Impacto", de 2000 - que usou as cenas antigas do piloto sendo transportado do helicóptero para dentro do avião em uma história nova rodada a preço de banana e estrelada por James Russo e Ice-T!
Mais do que um "filme-catástrofe", AEROPORTO 75 pode ser considerado um ótimo veículo de propaganda para a tecnologia dos aviões e para o profissionalismo das tripulações dos voos comerciais norte-americanos. Pouca gente morre no desastre, e a aeronave é tão boa que pode ser tranquilamente pilotada por uma aeromoça recebendo ordens via rádio.
Fico me perguntando por que diabos os pilotos passam anos fazendo cursos e simulações de voo se, na hora H, a presença deles no cockpit não faz nenhuma diferença, e qualquer pessoa sem preparo pode controlar um avião com relativa facilidade - ou pelo menos essa é a mensagem passada por filmes como esse e, mais tarde, "Turbulência".
Claro que essas imbecilidades todas apenas tornam a coisa toda mais engraçada. E convenhamos que não tem como levar a sério um suposto dramalhão repleto de diálogos hilários, tipo aquele que se refere à menina que vai receber transplante: "Coitadinha! Ela está em Washington e o seu rim está em Los Angeles".
Com essa, encerro minha análise dessa comédia brilhante que é AEROPORTO 75. E se você quiser levar o filme a sério, azar o seu!
Trailer de AEROPORTO 75
******************************************************* Airport 1975 (1974, EUA) Direção: Jack Smight Elenco: Charlton Heston, Karen Black, George Kennedy, Efrem Zimbalist Jr., Gloria Swanson, Dana Andrews, Myrna Loy, Sid Caesar, Helen Reddy e Linda Blair.
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