Filmes Legais
CONCORDE (1979)
"Rip-off" é o termo em inglês usado para definir aqueles filmes baratos realizados com o objetivo de faturar em cima de superproduções de sucesso de Hollywood, reutilizando temas e até títulos semelhantes. Não foram os produtores italianos que inventaram a prática, mas com certeza estão entre os que a aproveitaram com mais frequência, principalmente entre as décadas de 1970-80.
Para cada blockbuster hollywoodiano, lá estava a sua versão barata italiana; por exemplo, para cada "O Exorcista", "Tubarão", "A Profecia" e "Guerra nas Estrelas", os carcamanos atacavam com seus, respectivamente, "O Anticristo", "Tentáculos", "Holocaust 2000" e "Starcrash". E nem vamos falar nas cópias italianas dos zumbis de George Romero, dos filmes tipo "Mad Max" e das aventuras estilo "Conan" ou "Rambo", caso contrário o assunto vai longe.
Pois eis que, por volta de 1978, espalhou-se o boato de que o quarto filme da série "Aeroporto", a ser lançado no ano seguinte, seria sobre o novo avião supersônico Concorde. Os produtores italianos Mino Loy e Luciano Martino, que de bobos não tinham nada, resolveram financiar sua própria versão barata dos filmes-catástrofe hollywoodianos, usando o Concorde na trama e no título para sair na frente do "produto oficial" e faturar uma graninha com aquele público que trocava gato por lebre.
Assim surgiu
"Concorde Affaire '79", lançado em VHS no Brasil simplesmente como
CONCORDE (embora tenha sido exibido algumas vezes na TV como
"O Caso Concorde").
A tática de Loy e Martino funcionou:
CONCORDE chegou aos cinemas da Europa meses antes do "filme oficial", o ultra-trash "Aeroporto 80 - O Concorde": enquanto a superprodução da Universal estreou oficialmente em 3 de agosto de 1979, e chegou aos países europeus apenas no final daquele ano e início de 1980, o
CONCORDE carcamano aterrissou antes por lá, estreando nos cinemas de Roma em 23 de março de 1979.
Como o título original era muito parecido com o da franquia "Aeroporto" (com direito à citação do ano, 79!), muitos cinéfilos correram ao cinema acreditando que aquele era o "oficial", a superprodução sobre o Concorde da qual tanto se falava. Quebraram a cara, é claro: a cópia italiana não é exatamente um filme-catástrofe, como os episódios da série em que se inspirou, e usa o desastre aéreo e o próprio supersônico com muita economia. Mas até que o pessoal descobrisse a malandragem,
CONCORDE já tinha feito uma bela bilheteria na Europa - mais do que faria, depois, o oficial "Aeroporto 80 - O Concorde"!
Curioso é constatar quem comandou esta versão macarrônica: um tal de "Roger Deodato", que vem a ser o único e consagrado Ruggero Deodato, diretor do clássico "Cannibal Holocaust". Inclusive
CONCORDE é uma obra meio desconhecida/esquecida da sua filmografia porque ficou "ensanduichada" entre dois excelentes filmes exploitation de horror e sangueira, "O Último Mundo dos Canibais" (1977) e "Cannibal Holocaust" (1980).
Numa entrevista ao livro "Cannibal Holocaust and the Savage Cinema of Ruggero Deodato", de Harvey Fenton, Julian Grainger e Gian Luca Castoldi, o diretor declarou o seguinte:
"Se eu tivesse um milhão de liras a mais, o filme seria uma obra-prima, poderia ser comparado às produções americanas daquela época". Deodato também destacou que a Universal tentou processar os realizadores por lançarem seu rip-off antes do oficial, mas não deu em nada.
Bem, permita-me discordar, Sr. Deodato, mas de obra-prima
CONCORDE não tem nada - e duvido que ficaria melhor mesmo com 10 milhões de liras a mais. Embora chupe na maior cara-de-pau alguns elementos do popular cinema-catástrofe da época (sim, há um Concorde em perigo, e também um elenco de astros, embora nesse caso sejam astros de segundo escalão),
CONCORDE é uma enganação: um filme meia-boca de ação que usa a aeronave como pano de fundo, e não atração principal. As cenas aéreas, e com o supersônico em risco, não chegam a somar 15 minutos da narrativa!
Assim, na maior parte do tempo, o que vemos é o galã de segunda divisão James Franciscus ("De Volta ao Planeta dos Macacos") zanzando para lá e para cá numa ilha caribenha, passando por paisagens de cartão-postal e enfrentando capangas que querem matá-lo. Também há um montão de cenas submarinas, talvez inspiradas por "Aeroporto 77"; inclusive o filme tem muito mais cenas debaixo d'água do que no ar!
Mas vamos à trama:
CONCORDE começa com a queda de um supersônico enquanto sobrevoava as Antilhas. Há uma pane geral nos equipamentos e a aeronave, que estava em testes, sem passageiros, cai no meio do Oceano Atlântico, matando todos os tripulantes, com exceção da aeromoça Jean Beneyton (Mimsy Farmer, de "Quatro Moscas Sobre Veludo Cinza"), que é resgatada e sequestrada por piratas (?!?).
Somos então apresentados a Milland e Danker (respectivamente Joseph Cotten, que apareceu em "Aeroporto 77", e Edmund Purdom), os malignos executivos de uma empresa cujo faturamento vem da exploração de linhas aéreas na América do Sul. Eles temem que o surgimento do Concorde, com maior velocidade e menos tempo de voo, possa comprometer seus lucrativos negócios. Logo, resolvem sabotar os voos do supersônico para derrubar o maior número de aeronaves, fazendo com que o programa seja considerado inseguro e cancelado!
Os malvados capitalistas só não contavam com a astúcia do repórter nova-iorquino Moses Brody (James Franciscus, quem mais?). No mesmo momento em que surge a notícia de que o Concorde em testes desapareceu em algum lugar do Atlântico, Moses recebe um telefonema da sua ex-esposa Nicole (Fiamma Maglione), chamando-o para ir rapidamente à Martinica e prometendo uma "grande manchete".
Só que quando o jornalista chega à ilha, descobre que sua ex foi assassinada na véspera - pelos mesmos homens que estão mantendo a aeromoça como refém e chantageando os executivos sabotadores, exigindo milhões de dólares pelo seu silêncio. E, como Moses vai descobrir da pior forma possível, quem chega muito perto da verdade (ou seja, do Concorde naufragado ali perto) acaba morrendo.
Com a ajuda de um amigo da finada ex, George (Francisco Charles), o jornalista mergulha e encontra o Concorde submerso. Mas, quando tenta alertar as autoridades, todas as evidências são apagadas. A única chance de Moses conseguir provar a verdade é resgatar a aeromoça sobrevivente das mãos dos chantagistas.
Paralelamente, Milland e Danker põem em prática mais um plano de sabotagem a um segundo Concorde, este com passageiros, e que começa a enfrentar problemas em pleno voo, sofrendo da mesma pane generalizada que derrubou o primeiro supersônico. A vida dos tripulantes e passageiros agora depende de Moses e de Jean, que por sua vez ainda precisam fugir dos vilões que querem eliminá-los.
Sendo um filme obscuro e pouco discutido, é difícil saber quem é o verdadeiro responsável por
CONCORDE ser o que é: se o diretor "Roger Deodato", os produtores ou os roteiristas Ernesto Gastaldi e Renzo Genta, trabalhando a partir de argumento de Alberto Fioretti. Fato é que os italianos parecem não ter aprendido direito a lição ensinada pelo cinema-catástrofe de primeira linha feito em Hollywood: além do desastre aéreo aqui ser um elemento secundário na trama, o drama da tripulação e dos passageiros não é suficientemente explorado.
Afinal, a graça da franquia "Aeroporto" é que sempre temos famosões interpretando pilotos e passageiros dos voos em perigo, e os filmes enfocam seus dramas pessoais e relações em meio à tragédia. Na versão macarrônica, nenhum dos astros sequer chega a pisar no Concorde, muito menos voar nele para fazer parte do bloco do "desastre aéreo". O único ator conhecido no ar é o veterano Van Johnson, então decadente, como o capitão do supersônico (abaixo).
Os outros astros ficam todos em terra e nunca participam diretamente da trama do Concorde - e eu não usaria a palavra "astros" para nenhum deles, nem mesmo James Franciscus, trocando a expressão para "atores conhecidos". Logo, os passageiros do voo condenado são interpretados por anônimos sem nenhuma expressão, com quem o espectador nunca simpatiza nem se solidariza - a bem da verdade, sequer sabemos seus nomes, tão primário é o desenvolvimento do "núcleo aéreo" da narrativa.
No fim,
CONCORDE não é um filme-catástrofe sobre um voo em perigo, como o título e o pôster levam a acreditar, mas sim, quem diria, um filminho de ação bem convencional sobre James Franciscus fugindo de bandidos em terra firme mesmo, ou então mergulhando em busca de evidências da sabotagem no avião que caiu.
Se os efeitos especiais do filme oficial, "Aeroporto 80", já não eram grande coisa, e isso numa produção milionária bancada pela Universal, os mostrados em
CONCORDE chegam a ser constrangedores. Enquanto a produção hollywoodiana conseguiu seu supersônico com autorização da Air France, Deodato e cia. pediram autorização à outra única empresa que produzia a aeronave, a British Airways.
Ao que parece, a empresa britânica permitiu que gravassem algumas cenas externas com o Concorde em voo, mas esses trechos são tão granulados e com qualidade tão inferior ao restante do filme (imagens abaixo), que provavelmente são cenas de arquivo cedidas pela própria companhia aérea. Com menos grana para efeitos especiais espetaculares como os da série "Aeroporto", os realizadores tiveram que se virar com miniaturas para simular o Concorde em perigo - em momentos que quase nunca convencem.
Enquanto as cenas aéreas são bem toscas, as aquáticas são ótimas e estão entre as melhores partes do filme. Ok, a produção é barateira o suficiente para usar uma miniatura constrangedora do Concorde submerso nesses trechos, mas ainda assim Deodato consegue criar um ótimo clima de suspense (e exagero), ao jogar seu protagonista em enrascadas cada vez piores.
Primeiro, Franciscus enfrenta um rápido ataque de tubarão (antecipando a ameaça que o mesmo Franciscus enfrentaria alguns anos depois em "O Último Tubarão", de Enzo G. Castellari); depois, quando a mão do seu parceiro de mergulho fica presa na porta do supersônico naufragado, Moses precisa decepá-la com uma faca, lembrando os bons tempos de cinema sensacionalista do diretor.
Além dos atores conhecidos já citados, é preciso citar outro nome "ilustre" em
CONCORDE: o ator pornô nova-iorquino Robert Kerman (quem em seus filmes hardcore assinava "Robert Bolla"), no papel do controlador de tráfego aéreo do aeroporto de Londres, um personagem que - veja só - se chama "Kelman"! Vale lembrar que o ator repetiria este mesmo papel na franquia oficial, com uma pequena participação em "Aeroporto 80 - O Concorde".
Sem bigode, Kerman apareceu não-creditado aqui, mas seu trabalho posterior com Deodato foi "Cannibal Holocaust". E aí ele se transformou, da noite para o dia, num astro do cinema exploitation italiano (que também fez outros dois filmes sobre canibais, "Os Vivos Serão Devorados" e "Cannibal Ferox").
Curiosamente, os intérpretes dos outros controladores de voo que trabalham com "Kelman" no aeroporto de Londres também são provenientes do cinema X-Rated! Não sei quem foi o responsável pelo casting, mas repare na foto acima: Robert Kerman está ladeado pelos atores hardcore Michael Gaunt (sentado, à esquerda) e Jake Teague, do clássico "Debbie Does Dallas" (o careca sentado, à direita)!
Ambos também tentaram a sorte no cinema italiano, mas não foram muito longe: talvez por influência do próprio Kerman, Teague teve pequenas participações em "Os Vivos Serão Devorados" e "Cannibal Ferox", e faleceu logo depois, em 1983; já Gaunt aparece como um dos coveiros na cena do cemitério de "Pavor na Cidade dos Zumbis", de Lucio Fulci!
Embora os quatro filmes oficiais da série "Aeroporto" sejam bem ruins,
CONCORDE consegue ser ainda mais fraco. Ok, "Aeroporto 80 - O Concorde", a produção que os carcamanos chuparam diretamente, é péssima, mas pelo menos diverte - coisa que este filme do Deodato não faz tão bem.
Até tem seus momentos, e um certo charme na misturança de elementos e situações (desastre aéreo, piratas chantagistas, aeromoça em perigo, jornalista heróico, perseguições de carro, cenas aquáticas, tubarões, paisagens de cartão-postal e uma pitada de gore). Além da música do mestre Stelvio Cipriani, que lembra bastante o tema que ele compôs, dois anos antes, para "Tentáculos", de Ovidio G. Assonitis.
Mas a tragédia envolvendo o Concorde parece ter sido jogada num outro roteiro qualquer para justificar o título e a chupação, e os atores principais (Franciscus, Cotten, Purdom) nunca se envolvem diretamente com a aeronave em perigo, o que é frustrante. Eu certamente não citaria a obra entre as mais memoráveis de Deodato.
Por outro lado, não deixa de ser irônico o fato de
"Concorde Affaire '79" ter sido o único dos cinco filmes analisados a chegar às videolocadoras brasileiras, e DUAS VEZES, primeiro pela VideoCast, depois pela VideoBan (ao lado - com um agradecimento especial ao Albino Albertim, do excelente blog VHS - O Último Reduto, por ter mandado a capinha da VideoBan; clique na imagem abaixo para ampliar).
E digo que é irônico porque os quatro episódios oficiais da franquia "Aeroporto", apesar de grandes sucessos nos cinemas e mesmo nas reprises na TV brasileira, nunca foram lançados em VHS, e só saíram aqui no país mais recentemente, já na era do DVD.
Não que alguém tenha sentido falta, claro...
PS: Atendendo a pedidos de diversos leitores, a
"Maratona Aeroporto" continua ainda esta semana com resenhas das duas famosas sátiras da série, "Apertem os Cintos... O Piloto Sumiu!" Partes 1 e 2!
Créditos iniciais de CONCORDE*******************************************************
Concorde Affaire '79 (1979, Itália)
Direção: Ruggero Deodato
Elenco: James Franciscus, Mimsy Farmer, Joseph Cotten,
Edmund Purdom, Venantino Venantini, Fiamma Maglione,
Ottaviano Dell'Acqua e Robert Kerman.
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