Existem vários westerns em que o protagonista se vê temporariamente cego e precisa enfrentar seus inimigos privado da visão. Um dos mais lembrados é "Mannaja", do Sergio Martino, que traz o saudoso Maurizio Merli como um pistoleiro que, na cena final, tem as pupilas queimadas pelo sol após uma terrível tortura.
Mas não consigo lembrar de outro bangue-bangue em que o protagonista seja um cego de nascença. Só por isso, BLINDMAN já é uma produção diferente e curiosa. Afinal, como pode um pistoleiro sem visão sobreviver num ambiente violento onde sacar primeiro (e ter olhos para mirar, obviamente) faz toda a diferença?
O interessante é que esta pequena pérola inventada pelo próprio astro e co-produtor Tony Anthony não tenta enrolar o espectador com malabarismos sobrenaturais do seu personagem principal: diferente do samurai cego Zatoichi ou do super-herói da Marvel Demolidor, que têm os outros sentidos absurdamente ampliados para compensar a perda da visão, o pistoleiro deficiente de BLINDMAN é, na mais generosa das definições, um completo inútil, que não tem qualquer chance diante dos adversários que enxergam normalmente, e precisa usar de muita astúcia e esperteza para sobreviver. E não é difícil acreditar nas proezas do personagem, provavelmente o mais humano dos heróis cegos já mostrado pelo cinema.
Criador da idéia, o norte-americano Anthony escreveu o roteiro com a ajuda de Pier Giovanni Anchisi e Vincenzo Cerami, e, embora não tenha lá muita pinta de galã, fez questão de interpretar "Blindman", o pistoleiro cego sem nome.
Para dirigir, foi contratado o especialista Ferdinando Baldi, que vinha de vários westerns clássicos do período, como o ótimo "Preparati La Bara/Viva Django", com Terence Hill.
Mas talvez o aspecto mais curioso do filme seja a presença do ingês Ringo Starr, baterista dos Beatles, tentando investir na carreira de ator apenas um ano depois do fim da banda.
Em primeiro lugar, é bom esquecer o ridículo título nacional "poético" que inventaram para o original BLINDMAN (por que não "O Pistoleiro Cego", ou simplesmente "O Cego"???). "Preso na Escuridão", o tal título poético, foi a tradução adotada pela distribuidora Ocean no recente relançamento do filme em DVD. Antes, na época do VHS, a escolha tinha sido ainda pior: o filme se chamava, sem nenhuma justificativa ou explicação lógica, "O Retorno do Gringo" (!!!), e trazia na capinha uma foto ampliada de Ringo Starr, que nem ao menos é o protagonista!
A trama é sobre Blindman, um cego que, ironicamente, recebeu a missão de escoltar 50 belas garotas para o Texas, onde elas têm casamento arranjado com alguns ricos garimpeiros - que inclusive já pagaram antecipadamente pelas "noivas".
O problema é que o pobre deficiente visual é passado para trás por seu contato, Skunk (Renato Romano), que prefere entregar as mulheres a um bandoleiro mexicano chamado Domingo (Lloyd Battista). Após explodir o amigo traidor com uma banana de dinamite, Blindman resolve que vai cumprir sua missão a qualquer preço, nem que para isso tenha que cavalgar até o México para recuperar as garotas.
Segue-se um diálogo impagável: cavalando às cegas (literalmente), o pistoleiro chega até um homem e pede orientações.
- Para que lado fica o México? - Como eu posso te mostrar? - Mostre ao cavalo!
Dito e feito: o cavalo do herói é inteligente e, além de atender prontamente aos chamados do seu dono por assobios, também segue as orientações dadas pelas outras pessoas. Após mais alguns dias de cavalgada, Blindman chega à vila de Domingo e descobre que as garotas estão sendo usadas como isca para seduzir e aprisionar um poderoso general mexicano (Raf Baldassarre). Descobre, também, que o irmão de Domingo, Candy ("interpretado" por Ringo), é apaixonado por Pilar (Agneta Eckemyr), a filha de um fazendeiro, e utiliza a moça como trunfo para conseguir suas noivas de volta.
Primeiro, Blindman tenta convencer Domingo a devolver suas mulheres na camaradagem, mostrando-lhe o contrato de casamento com os garimpeiros e tudo mais. Claro que o vilão não aceita assim tão fácil, e, após aplicar uma sova no cego, joga-o no meio da rua, forçando o herói a transformar a vida de Domingo e sua quadrilha num verdadeiro inferno, utilizando truques sujos e muita habilidade.
Como escrevi no início, BLINDMAN não tenta convencer o espectador de que seu herói cego é capaz de façanhas absurdas: mesmo que ele tenha a audição significativamente apurada para ouvir os passos de seus inimigos, por exemplo, ainda assim ele precisa atirar diversas vezes até conseguir realmente acertar alguém - e continua atirando mesmo quando o inimigo cai morto no chão, pois não tem como saber se o antagonista está mesmo morto. Em diversos momentos do filme, Blindman recebe a ajuda de pessoas que enxergam para se locomover ou montar armadilhas; sem elas, dificilmente o herói sobreviveria muito tempo no filme.
Diferente de outros western spaghetti do período, este tem uma grande quantidade de mulheres nuas - o que não deixa de ser irônico, já que o personagem principal é cego! -, inclusive um banho coletivo das 50 garotas.
Em certo momento do filme, para vingar-se da irmã de Domingo, Sweet Mama (interpretada pela gracinha Magda Konopka, de "Quem Dispara Primeiro?"), Blindman deixa a moça amarrada e completamente nua - embora ele não possa ver, sabe que todos os homens do vilão fatalmente a enxergarão, consumando a humilhação tanto da mulher quanto do seu irmão.
Principalmente por causa destas cenas de nudez, BLINDMAN teve diversos problemas com a censura norte-americana: a cópia foi praticamente retalhada para exibição nos Estados Unidos. Quem adquirir o DVD lançado no Brasil terá a cópia remasterizada e sem cortes, onde é possível perceber direitinho onde agiu a tesourinha da censura, já que as cenas cortadas ainda trazem o áudio original em italiano (não chegaram a ser dubladas em inglês na época do lançamento).
Por causa disso, a cada cinco minutos os atores deixam de falar inglês para falar italiano, dando uma idéia da quantidade de cortes que o filme sofreu! Curiosamente, a censura também havia retirado várias falas do próprio Blindman para tentar transformá-lo num herói mais honesto e boa gente - o que ele está bem longe de ser!
BLINDMAN também é bastante violento em comparação a outros filmes daquele período, graças principalmente à direção do sanguinário Baldi. Os tiros aqui já deixam sangrentos buracos de bala à la "Meu Ódio Será Sua Herança", de Peckinpah (que é de 1969), o herói não tem o menor problema em atingir inimigos desarmados pelas costas, e há até um massacre de soldados realizado com uma metralhadora gatling, à la "Django", de Corbucci, e "Preparati La Bara/Viva Django", do próprio Baldi.
Já o duelo final entre Blindman e Domingo sofreu tantos cortes da censura norte-americana que deve ter ficado incompreensível; mas, para dar uma idéia da crueza do troço, o vilão tem seus olhos queimados com um charuto (!!!) por um amigo de Blindman, para que o duelo com o herói possa ser de igual para igual!!!
BLINDMAN ainda reserva boas surpresas num gênero em que normalmente as idéias se repetem. Há uma cena de forte suspense em que os vilões colocam uma cobra venenosa entre os pratos do jantar do cego - e é preciso ter sangue de barata para não ficar arrepiado com aquela serpente zanzando a centímetros das mãos do pobre herói, que nem desconfia do perigo.
Também há uma cena numa estação de trem, "sonorizada" pelos barulhos do lugar, que lembra bastante o início do clássico "Era Uma Vez no Oeste". E o duelo final, claro, acontece num cemitério!
Outro ponto positivo do filme é o vilão Domingo, representado como uma figura menos caricatural do que a média do período. Domingo tem uma relação de grande carinho por seus irmãos Candy e Sweet Mama, que o torna mais humano e menos clichê do que outros vilões do western spaghetti.
Embora tenha sido um grande sucesso na época de seu lançamento, o filme não deu origem a seqüências. O que é ótimo: seria difícil acreditar que Blindman sobreviveria muito tempo caso acabasse envolvido em uma nova aventura (a própria cena final reforça isso, mostrando como é fácil enganar o pobre herói sem visão!).
Dez anos depois, em 1981, Baldi e o astro/roteirista/co-produtor Anthony se reuniram para filmar a aventura "Comin' at Ya!", que é considerada uma espécie de refilmagem disfarçada de BLINDMAN, só que em 3D (e com uma jovem Victoria Abril no elenco). Finalmente, em 1994, Armand Assante assumiu o papel de outro pistoleiro cego num filme norte-americano feito para a TV, "Vingança Cega", mais uma refilmagem disfarçada da obra de Baldi, com direção de Richard Spence e um elenco de caras conhecidas (além de Assante, Elizabeth Shue, Robert Davi e até um jovem Jack Black).
Mas duvido que qualquer um dos dois (que eu não vi) seja tão divertido quanto BLINDMAN, que ainda tem o mérito de trazer aquele que possivelmente é o mais realista e dramático herói sem visão já criado, um homem comum que se vê diante de grandes dificuldades, e que só sobrevive porque é mais esperto que seus antagonistas - além de contar com uma boa dose de sorte, é claro. Enfim, bem diferente do excesso de fantasia de um Zatoichi ou de um Demolidor. Se os cegos de verdade pudessem ver, tenho certeza que iriam aplaudir de pé.
Para terminar, uma curiosidade: anos depois, Tony Anthony produziu um filme aqui no Brasil, o clássico do mau gosto "Orquídea Selvagem", estrelado por um então decadente Mickey Rourke e filmado na Bahia e no Rio de Janeiro!
Dica: Vale a pena comprar o DVD Duplex lançado pela Spectra Nova. Normalmente, os DVDs de western spaghetti lançados no Brasil são um lixo, mas este surpreende por trazer uma imagem razoável em letterbox e a versão sem cortes do filme. Tem ainda, como programa duplo, o ótimo "Quem Dispara Primeiro?", de Giulio Petroni (que em breve também estará aqui no blog). Uma bela (e barata, cerca de R$ 9,90) aquisição para colecionadores do gênero.
Trailer de BLINDMAN
******************************************************* Blindman/ Il Cieco (1971, Itália/EUA) Direção: Ferdinando Baldi Elenco: Tony Anthony, Ringo Starr, Lloyd Battista, Magda Konopka, Raf Baldassarre e Marisa Solinas.
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