Hoje, amiguinhos, o FILMES PARA DOIDOS tem uma missão difícil: tentar redimir o maior fracasso comercial da carreira do mestre John Carpenter, e provavelmente o seu filme mais criticado.
Estamos falando de MEMÓRIAS DE UM HOMEM INVISÍVEL, comédia que o criador de "Halloween" e "Fuga de Nova York" filmou em 1992. Não é exagero dizer que esse é um dos filmes mais odiados de um cineasta cuja filmografia é quase irretocável, com raras obras fracas e muitos títulos memoráveis.
Mas Carpenter nunca teve sorte quando trabalhou com grandes estúdios e grandes orçamentos. Parece até maldição: "O Enigma do Outro Mundo" (1982) mal recuperou, nas bilheterias, a grana que custou, enquanto "Os Aventureiros do Bairro Proibido" (1986) foi um fiasco tão grande nos cinemas que fez o diretor voltar às produções independentes jurando nunca mais comandar um blockbuster.
"O Príncipe das Sombras" e "Eles Vivem" (respectivamente de 1987 e 88) foram produções menores, mais baratas e mais bem-sucedidas. Mas aí, quatro anos depois, a Warner sacudiu um maço de verdinhas diante de Carpenter e o diretor resolveu sair do exílio para dirigir sua produção mais cara até então.
A gênese de MEMÓRIAS DE UM HOMEM INVISÍVEL não foi simples. Esse talvez seja o projeto mais impessoal de Carpenter (que, por isso, não colocou seu tradicional "John Carpenter's" sobre o título). Quem mandou e desmandou na produção, além da Warner, foi o astro do filme, Chevy Chase.
Chevy é um rosto que ficou marcado em comédias dos anos 80, principalmente a franquia "Férias Frustradas". A exemplo de outros colegas do humor da época (especialmente Bill Murray), ele estava ficando velho e queria dar um novo rumo, mais sério, à sua carreira.
Em 1986, o ator comprou os direitos sobre o livro "Memoirs of an Invisible Man", de H.F. Saint, uma bem-humorada variação do tema, sobre um corretor da bolsa que fica invisível após um acidente de laboratório e precisa fugir da CIA, que pretende usá-lo como arma de guerra.
A primeira versão do roteiro foi escrita pelo veterano William Goldman e oferecida a diretores como Ivan Reitman, mas nenhum estúdio tinha interesse em bancar o projeto porque achavam que o público não queria ver Chevy Chase num papel mais sério.
Finalmente, em 1990, o material acabou nas mãos de Carpenter e ele aceitou a missão, mas exigiu mudanças para que o filme virasse mais uma fantasia de humor negro. Robert Collector e Dana Olsen reescreveram totalmente aquele primeiro roteiro de William Goldman.
Em MEMÓRIAS DE UM HOMEM INVISÍVEL, Chevy interpreta Nick Halloway, um corretor que, durante uma ressaca infernal, vai participar de um seminário num grande laboratório e acaba adormecendo no banheiro.
Só que uma experiência dá errado e metade do edifício, inclusive o pobre Halloway, ficam invisíveis. A imagem do prédio com vários pedaços faltando é uma das grandes cenas do filme.
Quando nosso herói acorda e descobre o que lhe aconteceu, sua primeira providência é procurar ajuda. Só que as intenções do agente da CIA David Jenkins (Sam Neill, ótimo) não são das melhores.
Sem nenhuma intenção de tornar-se rato de laboratório, Halloway foge - apenas para descobrir que a vida de homem-invisível não é nada divertida, e muito solitária. Principalmente quando ele lembra que tem encontro marcado com uma documentarista gatíssima (interpretada por Daryl Hannah) e não pode aparecer - literalmente!
A idéia de Carpenter (com as bênçãos de Chevy, na sua tentativa de ser "mais sério") era dar mais destaque ao drama da solidão provocada pela invisibilidade e menos às palhaçadas cometidas pelo homem-invisível, embora ainda existam umas cenas bem divertidas.
Mas o resultado dividiu o público e a crítica: o filme não é tão engraçado quanto esperavam os fãs de Chevy Chase, e nem tem tanta ação e suspense quanto queriam os fãs de John Carpenter. Por causa disso, a produção de 40 milhões de dólares foi um fiasco de bilheteria, mal arrecadando 14 milhões.
Se quiser ter uma ideia do quanto MEMÓRIAS DE UM HOMEM INVISÍVEL é odiado, tente procurar por alguma crítica positiva na internet. Eu mesmo não tinha boas recordações do filme, e lembrava dele apenas como uma comédia estúpida e pouco inspirada.
Foi revendo-o agora que mudei meu conceito. Mesmo muito distante dos grandes filmes de Carpenter, MEMÓRIAS DE UM HOMEM INVISÍVEL tem ótimas qualidades e efeitos especiais que continuam funcionando mesmo depois do seu "primo milionário", "O Homem Sem Sombra", de Paul Verhoeven - outra história contemporânea sobre invisibilidade, mas cujo roteiro eu acho bem pior do que o do filme do Carpenter.
Para quem conhece bem a obra do diretor, essa comédia-aventura-suspense não parecerá um trabalho tão impessoal assim. Afinal, ainda que o filme eventualmente se renda ao humor, o que se vê é um perfeito exemplo do gênero fantástico, com ótima utilização de criativos efeitos e trucagens para "dar vida" à invisibilidade do protagonista.
Acontece que o acidente no laboratório não deixa apenas o protagonista invisível, mas também suas roupas (eliminando o trabalho de ter que andar pelado para desaparecer). Porém, coisas que "entram" no corpo invisível do protagonista, como comida, água ou a fumaça de um cigarro, tornam o interior do seu organismo visível, o que rende cenas muito interessantes - principalmente o vômito visto "por dentro" ou a fumaça do cigarro moldando os pulmões de Nick.
Ao mesmo tempo, Carpenter narra uma história de suspense - a caçada dos agentes ao protagonista -, que lembra vários dos seus filmes anteriores em que um personagem solitário precisa enfrentar a caçada sem tréguas dos representantes do governo (de "Starman" a "Eles Vivem").
Uma das grandes críticas a MEMÓRIAS DE UM HOMEM INVISÍVEL ironiza o fato de Chevy Chase continuar aparecendo durante boa parte do filme, mesmo quando deveria estar invisível, forçando o espectador a "imaginá-lo" invisível.
Por mais que isso realmente possa parecer uma grande falha, a maioria das cenas em que o astro continua "aparecendo" justifica-se plenamente. E não só pelo fato de que não adiantaria nada ter um ator famoso para usar apenas a sua voz na maior parte do filme.
Acontece que diversas cenas só fazem sentido quando VEMOS o homem-invisível (novamente, por mais que isso pareça idiota). Por exemplo, a cena em que Halloway usa suas mãos para abrir e fechar a boca de um homem desacordado (para poder "dublá-lo" durante uma corrida de táxi) perderia totalmente a graça e a função de existir caso não víssemos Chevy Chase fazendo isso com o pobre sujeito, IMAGINANDO que ele está invisível embora possamos vê-lo.
O mesmo vale para o momento, perto do final, em que Halloway tira e segura seu casaco (sujo de cimento, e, portanto, "visível") para enganar seu perseguidor. A cena não teria o mesmo impacto caso não VÍSSEMOS o homem-invisível (sim, isso soa estúpido).
E quer saber? Essa reclamação também não tem muito fundamento, porque em boa parte de MEMÓRIAS DE UM HOMEM INVISÍVEL o protagonista realmente não aparece, num festival de efeitos especiais ainda surpreendentes envolvendo roupas que andam "sem corpo".
Segundo disse Carpenter numa entrevista posterior, foi a tecnologia desenvolvida para o seu filme que originou os efeitos fantásticos de várias produções que vieram depois, como apagar as pernas de Gary Sinise em "Forrest Gump".
Há ainda um belíssimo momento em que a amada de Halloway resolve devolver um rosto ao protagonista com o uso de maquiagem - e, por alguns momentos, tudo o que vemos é um "rosto flutuante" e inexpressivo.
Boa parte do filme enfoca justamente essa insólita relação amorosa entre a personagem de Daryl Hannah e um homem que ela não consegue ver (a não ser durante uma chuva, em outro momento muito bonito).
E também a dura vida de homem-invisível, que pode espionar os outros sem ninguém saber (o que é divertido), mas ao mesmo tempo pode descobrir o que seus amigos realmente pensam dele ou acompanhar uma broxante cena de sexo (o que definitivamente NÃO é).
Alguns críticos mais "sérios" poderão enxergar o filme como uma metáfora sobre como o indivíduo se torna "invisível" numa sociedade moderna altamente competitiva, já que o pobre Nick Halloway não era notado por ninguém ANTES de ficar invisível, justamente por levar uma vida insignificante. Mas eu não chegaria tão longe: para mim, pessoalmente, a obra funciona mais como aventura descompromissada do que qualquer outra coisa.
Infelizmente, Carpenter também tem a história de suspense (envolvendo a perseguição de Halloway) para contar, e é essa parte que tira um pouco do brilho da história. Acredito que MEMÓRIAS DE UM HOMEM INVISÍVEL ficaria bem melhor caso se concentrasse mais nas dificuldades do protagonista para viver invisível, já que ele não pode nem comer porque seria descoberto - já que a comida em seu estômago continua visível!
Mas, no fim, o resultado dessa mistura não é nada desprezível, muito menos tão horroroso quanto eu lembrava. O próprio Carpenter declarou exatamente isso, que o filme não é tão ruim quanto ele achava que era, porém foi um fracasso mesmo assim.
O fiasco comercial quase enterrou a carreira do diretor e do astro: Chevy nunca mais conseguiu bons papéis e acabou preso à série "Férias Frustradas" (seu último filme memorável - ainda que ruim - é "Férias Frustradas em Las Vegas", de 1997). Já Carpenter voltou a ser "independente" e ficou três anos remoendo o fracasso até voltar com o superior "À Beira da Loucura".
Ainda que tenha defeitos óbvios (principalmente a falta de atenção com personagens secundários, como o "melhor amigo" de Nick), MEMÓRIAS DE UM HOMEM INVISÍVEL é um filme que eu recomendo para revisão - principalmente por quem também viu na época do lançamento e não tem boas lembranças.
O tempo e o amadurecimento às vezes fazem justiça a algumas produções, e eu diria que essa simpática "comédia fantástica" de John Carpenter é um desses casos. E, bem, muito melhor que o remake "A Cidade dos Amaldiçoados", esse sim um indiscutível ponto fraco da carreira do diretor!
PS: Duas piadas internas. Primeiro, a cidade onde fica o laboratório chama-se Santa Mira, a mesma cidade (fictícia) de "Vampiros de Almas" e "Halloween 3" (esse último produzido por John Carpenter). E a personagem de Daryl Hannah supostamente voltou do Brasil, sendo que a própria atriz estava filmando no Brasil no ano anterior a MEMÓRIAS DE UM HOMEM INVISÍVEL (o filme era "Brincando nos Campos do Senhor", de Hector Babenco).
Trailer de MEMÓRIAS DE UM HOMEM INVISÍVEL
******************************************************* Memórias de um Homem Invisível (Memoirs of an Invisible Man, 1992, EUA) Direção: John Carpenter Elenco: Chevy Chase, Daryl Hannah, Sam Neill, Michael McKean, Stephen Tobolowsky, Jim Norton, Pat Skipper e Patricia Heaton.
- Halloween Iii - A Noite Das Bruxas (1982)
HALLOWEEN III - A NOITE DAS BRUXAS é um filme que boa parte da humanidade aprendeu a odiar somente pelo título, que remete à série iniciada por John Carpenter em 1978, mas não tem absolutamente nenhuma relação com este ou com a sua primeira sequência,...
- Problemas Modernos (1981)
Poderes telecinéticos eram o assunto do momento entre a metade dos anos 1970 e o início da década de 80. Talvez o sucesso do "paranormal" israelense Uri Geller, que naquela época aparecia direto na TV entortando talheres com a "força da mente",...
- 4d Man (1959)
(Este artigo foi originalmente escrito para o site Boca do Inferno em 2007, mas eu acho que hoje ele se encaixa muito melhor aqui no FILMES PARA DOIDOS. Portanto, ei-lo republicado em versão revisada.) Eu tinha 14 anos quando vi 4D MAN pela primeira...
- Projeto FiladÉlfia (1984)
É sempre um risco rever aqueles seus filmes preferidos da infância. Afinal, para cada "Fuga de Nova York", "Mad Max 2" e "A Noite dos Arrepios", que parecem envelhecer como o vinho, existem incontáveis obras tipo este PROJETO FILADÉLFIA, que, como...
- Uma Chance Para Filmes Boicotados - Parte 1
Há alguns posts atrás, na parte dos comentários, eu tentei explicar meu critério para "boicotar" filmes como "Avatar", "Anticristo" e a trilogia "Jurassic Park". Mas a verdade verdadeira é que não existe um critério muito definido: eu simplesmente...