O GRANDE GOLPE (1956)
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O GRANDE GOLPE (1956)



Sempre que um diretor ganha status de gênio ou se transforma em lenda, é comum que seus primeiros filmes sejam esquecidos, ou considerados "produções menores" em comparação aos clássicos que dirigirá posteriormente.

Foi assim, por exemplo, com Francis Ford Coppola, que antes de "O Poderoso Chefão" e "Apocalypse Now" dirigiu um pequeno filme de horror produzido por Roger Corman, "Dementia 13", que a maioria dos cinéfilos costuma descartar (embora seja ótimo). Foi assim também com Spielberg: muitos de seus fãs nunca viram o clássico "Encurralado", um de seus primeiros e melhores filmes.

E tem também o Stanley Kubrick. Cinéfilos de todas as idades se divertem tentando eleger os melhores filmes desse grande diretor, e é claro que figurinhas carimbadas, como "2001", "Laranja Mecânica" e "Dr. Fantástico", normalmente dominam os "Top Ten" do diretor. No caso de uma filmografia praticamente impecável, como a de Kubrick, é até comum dar menos importância para seus primeiros filmes, aqueles que ele fez ainda jovem e com pouca influência no mundo do cinema.


Mas não se engane: O GRANDE GOLPE, que é apenas o terceiro filme do diretor, é uma daquelas obras-primas esquecidas que teve maciça influência na cultura pop. Também é, provavelmente, um dos melhores filmes de roubo da história. Mesmo assim, raramente aparece em qualquer "Top Ten" de Kubrick. Eu, pelo menos, o colocaria entre os cinco melhores do diretor, sem pensar muito.

Lembro que só descobri que O GRANDE GOLPE existia depois de ter visto "Cães de Aluguel", no começo dos anos 90. Um ex-colega de trabalho falou maravilhas e praticamente me obrigou a ver, contando o filme inteiro como uma forma de me preparar para a cena final: "O cara tem um trabalhão para inventar um plano perfeito, todo mundo morre, aí ele vai para o aeroporto tentar fugir com todo aquele dinheiro e... Bom, aí tu tem que ver o que acontece", relatou o saudoso ex-colega, completando: "Dá dez a zero no 'Cães de Aluguel', e deve ser um dos melhores finais de filme de todos os tempos!".

Resultado: abobalhado pela propaganda feita, tive que ficar acordado até umas quatro da manhã para poder gravar o filme do Corujão, quando a Globo ainda passava esses clássicos na madrugada (afinal, ele não havia sido lançado em VHS no Brasil, e o DVD só chegaria quase uma década depois). Foi só aí que percebi como o incensado filme do Tarantino era bastante inspirado no de Kubrick, além, é claro, de pegar diversas idéias de "Perigo Extremo", do Ringo Lam.


Quando Kubrick fez O GRANDE GOLPE, ele já tinha certa moral no mundo do cinema por causa do sucesso do seu segundo trabalho, o estiloso "A Morte Passou por Perto" (1955).

Dessa vez, o diretor resolveu adaptar o livro "Clean Break", de Lionel White. Escreveu um roteiro não-linear e chamou Jim Thompson, um famoso autor de "pulp fictions" da época ("Os Implacáveis", do Peckinpah, foi baseado em livro dele), para criar diálogos memoráveis. E que diálogos: "Você tem um maço de dólares onde as outras mulheres têm um coração", "Moça, você tem uma bela cabeça sobre os ombros. Quer mantê-la aí ou sair carregando nas mãos?", e nessa linha vai.

O GRANDE GOLPE trata do minucioso planejamento de um crime perfeito. Johnny Clay (Sterling Hayden, nome imposto pelo estúdio, mas ótimo no papel) é um criminoso que acabou de sair da cadeia e está disposto a dar o "grande golpe" para poder curtir o resto da vida como milionário.


O objetivo é roubar dois milhões de dólares (um dinheirão na época; se bem que hoje também é, pelo menos para mim!) de um hipódromo, bem no dia de uma grande corrida de cavalos que vai levar uma multidão ao local, inflacionando as apostas.

Para poder praticar o crime, Clay se alia a um grupo de homens que não são exatamente bandidos, mas apenas pobres-coitados com dificuldades financeiras, cuja posição e área de atuação pode ajudar na realização do assalto: George Peatty (Elisha Cook, de "House on Haunted Hill") é um dos caixas do hipódromo e quer usar a sua parte do dinheiro para comprar o amor da esposa adúltera, Sherry (Marie Windsor); Randy Keenan (Ted de Corsia) é um policial que precisa da grana para ajudar a esposa doente... Enfim, todos têm seus motivos, e não são exatamente caras malvados - apenas Clay é um bandidão no concreto sentido do termo.

Na primeira metade do filme, todo o plano é meticulosamente planejado para funcionar como um relógio. Clay também contrata alguns "peões" para provocar distrações e tirar a atenção sobre o assalto, como um pistoleiro (Timothy Carey) designado para matar um dos cavalos no auge da corrida, e um ex-lutador de luta livre (Kola Kwariani, que é a cara e o físico do Tor Johnson!) para iniciar uma briga de bar do hipódromo.


Quando todas as peças estão no tabuleiro, o plano acaba funcionando perfeitamente, como Clay previra, e como se fosse uma jogada de xadrez. Os problemas começam na divisão do dinheiro. Principalmente porque Sherry, a tal esposa traidora, andou contando do assalto para o seu amante, e mais gente aparece disposta a colocar a mão na bolada...

Tudo termina naquele tal final maravilhoso no aeroporto, que, como meu ex-colega de trabalho descreveu sem nenhum exagero, é uma daquelas cenas que fica marcada eternamente na memória de qualquer cinéfilo, do tipo "seria cômico se não fosse trágico".

A comparação que fiz, do plano de Clay com um jogo de xadrez, não foi gratuita e nem delírio de blogueiro que gosta de metáforas: o próprio Kubrick era um fã de xadrez, e disse ter criado O GRANDE GOLPE nos moldes de uma partida desse nobre jogo, onde a estratégia ocupa papel central e há os peões para serem sacrificados - não por acaso, um dos personagens do filme é especialista em xadrez, e seu encontro com Clay acontece num salão de jogos onde todos estão disputando partidas de... xadrez!


O filme é tão bem escrito e dirigido que funciona maravilhosamente bem, tal qual o "plano perfeito" do protagonista, criando uma tensão crescente à medida que se aproxima o momento do roubo (algo que filmes posteriores sobre "crimes perfeitos" não conseguiram nem de longe imitar).

Além disso, há a estrutura não-linear da narrativa, que, no momento do assalto, acompanha o papel de cada uma das "peças" no grande plano arquitetado por Clay.

Isso invariavelmente resulta na repetição de alguns acontecimentos (já que estamos revendo os fatos pelo ponto de vista de cada personagem), e o público da época não entendeu direito, embora o clássico "Cidadão Kane", que também traz uma narrativa não-linear, tenha sido feito anos antes.


Assim, O GRANDE GOLPE foi massacrado em algumas exibições-teste, e os produtores forçaram Kubrick a fazer uma nova montagem na ordem correta dos acontecimentos, para tentar tornar o filme mais convencional.

É claro que o diretor odiou a idéia, mas fez a remontagem mesmo assim, só para provar aos "gênios" do estúdio como a história perderia totalmente a lógica caso fosse exibida de maneira convencional. Dito e feito: os tais "gênios" se convenceram e optaram, a contragosto, pela edição "fora de ordem", mas adicionaram uma estúpida "narração para cegos" que explica detalhadamente cada cena, mesmo aquilo que o espectador está VENDO, supostamente para que os espectadores não ficassem perdidos com as idas e vindas da trama.

Ignorando essa estúpida voz do narrador, fica ainda mais fácil perceber como o filme funciona bem, com direito a uma cena belíssima, em plano-seqüência, que mostra Clay entrando no hipódromo e encontrando, ao longo do caminho, todas as peças do seu complicado plano.


E nem precisa lembrar como essa narrativa não-linear foi depois aproveitada por Tarantino em "Cães de Aluguel"... O nobre Quentin, por sinal, sempre foi um fã confesso de O GRANDE GOLPE, e quase contratou um dos seus atores (o lunático Timothy Carey) para o papel que ficou com Lawrence Tierney em "Cães de Aluguel".

Em seu terceiro filme, Kubrick já demonstrava ser mesmo um gênio, e por isso os momentos criativos não se resumem à estrutura narrativa, mas também à estética. Por exemplo, os personagens estão quase sempre na escuridão, iluminados por pequenos pontos de luz (um abajur, uma lâmpada, a brasa do cigarro), em cenas soberbas.


No final, as sombras inclusive refletem um X sobre o rosto de Sterling Hayden, lembrando sempre que a letra tinha um papel simbólico (anunciando morte, violência ou punição) em muitos filmes de gângsters da época, começando pelo "Scarface" de Howard Hawks - recentemente, Martin Scorsese homenageou essa tendência ao encher seu filme "Os Infiltrados" de letras X...

Para completar, num toque de gênio que deve ter deixado muita gente furiosa na época do seu lançamento, Kubrick desvia a câmera do alvo na principal cena do filme (a "matança" do título em inglês). Ao espectador, só resta escutar os sons dos tiros e depois ver os cadáveres espalhados pelo chão, mas sem saber quem atirou em quem e quem matou quem. Kubrick não mostra a violência, mas as conseqüências dela, numa opção estilística muito imitada desde então (como esquecer do antológico tiroteio final do incrível western "Matalo!", que adota essa mesma estratégia?).


Sem esquecer, ainda, que o truque de esconder uma espingarda no meio de flores virou clichê no cinema, aparecendo em filmes tão diferentes quanto "Um Dia de Cão", "O Exterminador do Futuro 2", "Fulltime Killer" e, mais recentemente, "Hitman". E a máscara de palhaço usada por Clay durante o assalto também pôde ser vista recentemente na cena inicial de "Batman - O Cavaleiro das Trevas", quando os capangas do Coringa, e o próprio, vestem máscaras bem parecidas.

É claro que, hoje, muito pretenso cinéfilo e pesquisador de cinema não dá a O GRANDE GOLPE a mesma importância dada a outras obras posteriores de Kubrick. Até por puro preconceito, já que esse é um legítimo filme B, ou seja, uma produção barata (custou 320 mil dólares) produzida para ser a "segunda atração" em cinemas que exibiam programas duplos - havia o "filme B" e o "filme A", que era a atração principal, um filme mais caro e melhor produzido. Na época, O GRANDE GOLPE foi exibido junto com o filme A "Bandido!", de Richard Fleischer.

Mas convém esquecer que Kubrick dirigiu genialidades posteriores para apreciar melhor essa obra-prima como o que ela realmente é: um excelente filme policial, que fica muitos degraus acima da média das produções B da época, com uma narrativa envolvente e original, ótimos personagens e situações, e aquele final que é realmente de arregalar os olhos.


Não por acaso, o sucesso do filme acabou abrindo o caminho para as grandes obras de Kubrick, quando Kirk Douglas, maravilhado com O GRANDE GOLPE, contratou o diretor para dirigir o filme de guerra "Glória Feita de Sangue".

Enfim, um CLÁSSICO que deve ser escrito em maiúsculas, mais um para a série "FILMES PARA DOIDOS POR CINEMA", e que todo mundo deveria ser obrigado a conferir uma vez na vida, nem que seja para ver aquela inesquecível cena final e saber o que acontece para motivar esse último diálogo entre o protagonista e sua namorada:

- Você precisa fugir, Johnny!
- E fugir pra quê?


Trailer de O GRANDE GOLPE


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The Killing (1956, EUA)
Direção: Stanley Kubrick
Elenco: Sterling Hayden, Coleen Gray,
Elisha Cook, Marie Windsor, Ted de
Corsia e Timothy Carey.



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