(Depois de algumas semanas de tranqueiras, nada como fugir um pouco da rotina com mais uma resenha da série FILMES PARA DOIDOS POR CINEMA.)
Imagine um filme sobre a Yakuza (a máfia japonesa) completamente diferente de tudo o que você já viu: ao invés de ficar trocando tiros, matando rivais ou cortando os dedos em sinal de lealdade, os gângsters passam a maior parte do tempo numa casa de praia, brincando com frisbee (!!!), jogando conversa fora e aprontando brincadeiras uns com os outros.
Pois assim é SONATINE, o quarto filme dirigido (e também escrito e estrelado) pelo mestre Takeshi Kitano. Considerando que praticamente nada acontece durante a maior parte dos 94 minutos da película, é mais do que inapropriado o título nacional, "Adrenalina Máxima" (!!!), certamente uma tentativa de tentar vender o filme de Kitano como um exemplar do explosivo cinema de ação japonês da época - "citando" ainda títulos brasileiros para produções do gênero, como "Fervura Máxima" e "Velocidade Máxima".
O que faz de SONATINE uma obra espetacular é que esse marasmo, esse "não acontece nada", esse ritmo letárgico e silencioso da maior parte do filme é quebrado inesperadamente, em diferentes momentos da trama, por explosões furiosas de violência - que pegam não só os personagens, mas o próprio espectador, de surpresa!
Quem acompanha o FILMES PARA DOIDOS há tempos deve saber que Takeshi Kitano é um dos meus cineastas contemporâneos preferidos. Particularmente, não acho SONATINE uma das melhores obras do diretor, mas ainda assim é um filmaço.
O diretor-roteirista interpreta Murakawa, um veterano membro da Yakuza que explora o jogo ilegal num bairro de Tóquio. Ele já está de saco cheio de ser gângster e vive um dia-a-dia de rotina, desprovido de emoção - mesmo quando precisa executar um rival nos "negócios", ele o faz de maneira tão desinteressada como se estivesse apenas varrendo o chão.
Certo dia, o chefão da Yakuza reúne seus aliados e resolve enviar Murakawa até a cidade japonesa de Okinawa, para intermediar as negociações de paz entre dois clãs mafiosos que estão em guerra. Mas o velho bandidão, que não é moleque nem nada, questiona a validade da "negociação", considerando que no passado, em outra situação parecida, perdeu três dos seus melhores homens.
É claro que o chefão não escuta seus argumentos, e assim Murakawa e seu bando - formado por comparsas fiéis e também por alguns garotos novos e indisciplinados - parte para sua missão.
Porém, já nos primeiros dias, o grupo sofre um violento atentado na cidade e resolve esconder-se numa casa de praia, onde veteranos e novatos irão se conhecer melhor e descobrir que têm pelo menos uma coisa em comum: nenhuma expectativa de vida.
Muito já se falou e se escreveu sobre como Martin Scorsese (com "Os Bons Companheiros", em 1990) e Quentin Tarantino (com "Cães de Aluguel", em 92, e "Pulp Fiction", em 94) desmistificaram e "desglamurizaram" o universo dos gângsters cinematográficos, mostrando-os como pessoas comuns, que fazem brincadeiras, riem e falam sobre filmes e músicas, ao invés de ficar o tempo todo planejando crimes e matando pessoas.
Mas pouca gente lembra de citar SONATINE, que tem uma pegada bem parecida. É realmente muito estranho ver membros durões da Yakuza jogando frisbee na praia (ainda que o personagem de Kitano logo apareça para acabar com a brincadeira, disparando tiros de revólver no frisbee!!!) ou tomando banho de chuva como se fossem crianças.
Porém o mais interessante dessa pequena gema do mestre Takeshi são os rompantes de fúria que, de repente, invadem a narrativa lenta e silenciosa, mudando completamente o tom do filme.
Como na vida real, a violência surge de repente, caótica, sem anúncio prévio (trilha sonora subindo, câmera tremendo, cortes rápidos na edição), e sem pistoleiros invadindo o quadro berrando "iáááááá" ou "die motherfuckers!!!!".
A primeira vez em que isso acontece é de fazer qualquer um saltar da poltrona: NADA acontece na primeira meia hora do filme além de diálogos entre os bandidos e cenas com pessoas caminhando ou andando de automóvel.
Então, inesperadamente, Murakawa e seu grupo estão num bar quando começa um tiroteio infernal, anunciado apenas pelo som dos tiros e pelas pessoas caindo ensanguentadas no chão (confesso que levei um susto, tão inesperado que é o ataque). Nunca me peguei no meio de um tiroteio, mas aposto que na vida real a coisa é bem assim.
Mais adiante, perto do final, outra cena explosiva de violência acontece dentro de um elevador lotado, e outra vez inesperadamente, com tiros sendo disparados para todos os lados e personagens centrais da trama morrendo como moscas. Ficou curioso? Então veja no vídeo abaixo:
Nunca troque tiros num elevador lotado!
Aqui, como em praticamente todos os filmes de Kitano, chama a atenção o fato de que ninguém fala ou grita durante os tiroteios (os personagens apenas ficam estáticos, sérios, disparando suas armas), e nenhum personagem grita de dor ao ser alvejado, como se a surpresa pelo ferimento fosse maior do que a dor.
Também como na maioria dos filmes do diretor, seu personagem, Murakawa, é um sujeito fechadão e de poucas palavras, mas capaz de revelar seus sentimentos apenas com os olhos puxados quase inexpressivos.
Ele vive uma relação esquisita com uma garota que salvou de um estupro (Aya Kokumai), mas ao mesmo tempo leva uma vida auto-destrutiva demais para se importar com o futuro. Tanto que, à noite, ao invés de ter um sono tranquilo, Murakawa sempre sonha que está estourando os próprios miolos ao jogar roleta russa!
E que personagem fantástico Murakawa é! Um gângster cansado da vida de gângster, que só quer administrar suas casas de jogo ilegal, mas acaba envolvido numa guerra estúpida que sabe que irá acabar em banho de sangue...
Na cena brilhante em que o chefão reúne seus aliados para explicar a missão, Murakawa ouve tudo silenciosamente e fumando um cigarro. Quando o conselheiro do chefe, e puxa-saco de marca maior, declara algo como "Chefe, nós colocamos nossas vidas em suas mãos", o personagem de Kitano levanta-se furioso e esbraveja: "VOCÊ está colocando minha vida nas mãos dele!".
Logo em seguida, revelando que é realmente um sujeito casca-grossa, Murakawa pega o tal conselheiro puxa-saco de surpresa no banheiro e arrebenta a fuça do cara a porradas!
Econômico em diálogos, tiroteios e até em movimentos de câmera, SONATINE é um filme parado e introspectivo, e por isso mesmo deverá decepcionar quem espera a "adrenalina máxima" prometida pelo título nacional.
Mas quem tem certa intimidade com o cinema, digamos, diferente de Takeshi Kitano vai curtir muito, principalmente porque as cenas são embaladas por uma belíssima (e melancólica) trilha sonora de Joe Hisaishi. A conclusão é a esperada, mas o filme tem pelo menos meia dúzia de cenas fantásticas que já valem o programa.
Ironicamente, SONATINE foi um fracasso de bilheteria na época do seu lançamento. Afinal, Kitano era um comediante popular na TV japonesa, e ninguém gostou de vê-lo como mafioso implacável e violento.
Somente anos depois, quando sua obra-prima "Hana-Bi - Fogos de Artifício" (1997) ganhou o Festival de Veneza, é que SONATINE foi redescoberto e reavaliado pelos críticos japoneses e do resto do mundo. Nos EUA, por exemplo, o filme só chegou aos cinemas em 98, com comentários elogiosos de um certo Quentin Tarantino, que "apadrinhou" a obra.
PS: Alguns consideram SONATINE uma grande homenagem de Takeshi Kitano a um dos seus mestres, o veterano Kinji Fukasaku. Em 1971, Fukasaku dirigiu um filme chamado "Sympathy for the Underdog", sobre gângsters que se reúnem na mesma Okinawa para resolver uma guerra de gangues. Kitano estaria prestando a homenagem ao cineasta que lhe deu a primeira oportunidade de dirigir um filme, o excelente "Violent Cop", em 1989, já que a obra seria originalmente dirigida por Fukasaku, mas ele desistiu e Kitano assumiu a missão.
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