Mais de quatro décadas depois do acidente de carro que matou a atriz espanhola no auge do sucesso, aos 27 anos de idade, muito já foi dito e escrito tentando explicar como é que o fascínio pela grande musa do diretor Jess Franco pode durar tanto tempo. Até porque atores e atrizes muito mais famosos, e com uma obra muito mais importante, não têm nem metade do culto da moça, cuja carreira é bem mais obscura para o "grande público".
Nascida em 1943, Soledad Miranda virou uma espécie de personificação da perfeição feminina nos filmes de Franco. E a parceria entre eles só não durou mais por causa da morte da atriz. Além da injustiça de um desfecho trágico quando se está no auge (que costuma garantir a imortalidade dos artistas), há algo de fascinante e hipnótico na persona de Soledad. Algo que o próprio Franco procurou obsessivamente depois, adotando Lina Romay como "musa sucessora", mesmo sabendo que entre as duas não havia comparação.
A melhor forma de entender o fascínio por Soledad Miranda é ver ELA MATOU EM ÊXTASE, um dos grandes filmes da sua curta trajetória como atriz - e, segundo o pesquisador Tim Lucas, o último que ela estrelou antes de sua morte prematura, embora algumas outras fontes aleguem que o título pertence ao thriller de espionagem "Der Teufek Kam aus Akasava".
Também é uma das grandes obras-primas de Franco, e um dos meus títulos preferidos da filmografia do diretor. Como é um filme onde o visual vale mais do que o resto, resolvi fazer uma resenha também visual, com mais imagens do que texto, só para variar um pouquinho.
ELA MATOU EM ÊXTASE faz parte de um período imediatamente posterior à associação com o produtor inglês Harry Alan Towers, e de um ano de "férias" em Liechtenstein, onde Franco acabou rodando três filmes de baixíssimo orçamento ("Pesadelos Noturnos", "Eugenie De Sade" e "Sex Charade", este último considerado perdido).
A partir daqui (começo dos anos 1970), Jess começou a dirigir co-produções Alemanha-Espanha para Artur Brauner (de Berlim) e Arturo Marcos (de Barcelona). "Vampyros Lesbos" foi o primeiro do pacote, seguido por "Der Teufek Kam aus Akasava" e finalmente por ELA MATOU EM ÊXTASE, que é uma espécie de refilmagem disfarçada de um belíssimo filme da fase clássica do diretor - "Miss Muerte", de 1965.
"Miss Muerte" contava a história de uma jovem cientista que se vinga dos médicos que teriam provocado a morte do seu velho pai cientista (por infarto, após ser humilhado pelos colegas ao apresentar o resultado de suas experiências numa conferência). Como arma de vingança, a protagonista utiliza uma sensual dançarina exótica, que segue suas ordens graças a um dispositivo de controle mental, e mata as vítimas com suas longas unhas envenenadas.
A principal diferença de ELA MATOU EM ÊXTASE para "Miss Muerte" é que aqui não há dançarina exótica controlada como se fosse zumbi: é a própria protagonista quem resolve sujar as mãos de sangue (literalmente). E é claro que a tal protagonista é ninguém menos que Soledad Miranda, o que torna a morte dos pobres médicos ainda mais doce.
Ela interpreta uma garota anônima - que, durante o filme, será chamada apenas de "Sra. Johnson" -, casada com o "Sr. Johnson" (Fred Williams), um médico idealista que faz experiências pouco ortodoxas com embriões humanos, na tentativa de entender o código genético e, através da mistura de hormônios humanos e animais (!!!), produzir "futuros seres humanos mais fortes e resistentes a doenças".
Apesar das boas intenções do doutor, o Conselho de Medicina condena as suas pesquisas, acusando-o de charlatão e açougueiro, e mandando destruir seu laboratório. Quando a licença médica do Dr. Johnson é revogada, ele vai lentamente perdendo o juízo, não sai mais da cama e nem reconhece a própria esposa, imerso em seus devaneios.
A jovem esposinha até tenta reanimar seu amor, levando-o à casa de praia onde eles viveram diversos momentos de prazer (e que é a famosa mansão Xanadú, em Alicante, na Espanha, uma bela obra projetada pelo arquiteto cubista Ricardo Bofill). Só que o médico não consegue resistir à humilhação sofrida e, aproveitando um momento de descanso da sua vigilante amada, comete suicídio cortando os pulsos.
Isso acontece nos primeiros 20 minutos do filme, e os outros 50 basicamente apenas acompanham a vingança da Sra. Johnson contra os quatro membros do Conselho Médico que ela julga responsáveis pelo suicídio do seu marido.
Os alvos da "heroína" são o Professor Walker (Howard Vernon, que também foi morto pela Miss Muerte no "filme original" de 1965), a Dra. Crawford (Ewa Strömberg), o Dr. Houston (Paul Muller) e o Dr. Donen, este último interpretado pelo próprio diretor Franco (que reservou para si a morte mais cruel nas mãos da própria musa!).
Todos os quatro serão primeiro seduzidos pela irresistível viúva assassina, e então mortos em pleno ato sexual, num desfecho que lembra a cópula de certos insetos, como o gafanhoto e o louva-a-deus (cuja fêmea mata o macho na hora do orgasmo).
Apesar do título do filme, nenhum deles chega ao orgasmo antes da morte: o "êxtase" em questão é da própria assassina, que faz caras e bocas de prazer enquanto esfaqueia, corta, asfixia e tortura suas vítimas!
Paralelamente, um inspetor de política (interpretado por Horst Tappert) investiga os misteriosos assassinatos, mas sempre chega atrasado na cena do crime.
ELA MATOU EM ÊXTASE foi filmado entre 21 de junho e 17 de julho de 1970, logo depois da conclusão das filmagens de "Vampyros Lesbos" e ao mesmo tempo em que o diretor terminava de gravar cenas de "Der Teufek Kam aus Akasava".
Por isso, estes três filmes têm muito em comum, inclusive dividindo o mesmo elenco (Soledad e Ewa aparecem nos três; Williams, Muller, Vernon e Tappert nos últimos dois). Já Soledad e a sueca Ewa se divertem protagonizando cenas lésbicas tanto aqui quanto no anterior "Vampyros Lesbos".
Escrito pelo próprio Franco (ele assina direção e roteiro com o pseudônimo "Frank Hollman"), o filme tinha o título original de "Miss Hyde" (ou "Mrs. Hyde", segundo algumas fontes), tentando forçar uma associação com a clássica história "O Médico e o Monstro", de Robert Louis Stevenson. Mas o nome foi logo substituído por "Sie Tötete in Ekstase".
Analisando friamente, hoje já não há mais nada de tão surpreendente nesta história de vingança bem simples: passados os primeiros 20 minutos, a narrativa apenas acompanha a vingança da viúva sem grandes lances de suspense ou surpresas, apenas pulando de uma cena de sedução seguida de morte para outra, e sem nada de muito violento ou chocante, ainda mais para essa geração movida a "Jogos Mortais". As cenas de assassinato são bem tímidas (tesourada na nuca, punhaladas off-screen...), e somente o ataque ao personagem de Franco é um pouco mais sangrento.
Mas há algo de irresistível na falta de ética, ou no "politicamente incorreto" da coisa toda. Afinal, a “heroína” do filme é uma viúva buscando vingança contra aqueles que ela acredita terem provocado a morte do seu marido; porém, quando você pára e pensa que o tal marido não era um pobre inocente, e sim um médico que fazia experiências proibidas com embriões humanos, percebe que ELE era o errado da história, e não o Conselho Médico que o condenou (por justa causa)!
Assim, como já acontecia em "Miss Muerte", os médicos assassinados pela protagonista não são exatamente "culpados"; sua única culpa é a de ter evocado o famoso Juramento de Hipócrates, segundo o qual os profissionais da saúde se comprometem a praticar a medicina honestamente.
Além da vingança "anti-ética", imagine o impacto no público da época quando a protagonista também começa a perder o juízo após os consecutivos assassinatos, escondendo o cadáver do marido na casa de praia e acompanhando a decomposição do cadáver enquanto conversa com ele como se ainda estivesse vivo!
Enquanto "Miss Muerte" foi filmado numa época em que Jess ainda era marcado de cima pela censura espanhola, ELA MATOU EM ÊXTASE já mostra sexo e perversão de maneira um pouquinho mais liberal. Além de diversas cenas de sexo softcore (incluindo uma relação "Girls Just Want to Have Fun" entre Soledad e Ewa), o Dr. Walker se revela um adepto de sadomasoquismo (tema recorrente na obra do diretor), que pede para a protagonista humilhá-lo, arranhá-lo e estapeá-lo na hora do rala-e-rola!
Somente a conclusão é um tanto decepcionante, quando Tappert, o tal investigador que não investiga nada, finalmente conclui que a Sra. Johnson é a culpada pelos crimes e vai até a casa de praia do casal para prendê-la. (SPOILERS) Aí a vingadora foge de carro, com o cadáver do marido no banco do passageiro, mas morre num acidente que é inacreditável de tão mal-filmado: Franco mostra apenas um veículo descendo uma ladeira leve, e tenta fazer o espectador acreditar que aquilo poderia ser um acidente fatal! Ironicamente, naquele esquema “a vida imita a arte”, a saída de cena de Soledad Miranda parece antecipar a sua morte trágica também na vida real, já que ela sofreu um acidente de automóvel quando estava ao lado do marido (que sobreviveu). Melancolicamente, as últimas palavras dela no filme são: "Na morte, ficaremos juntos para sempre. Em breve estarei com você". (FIM DOS SPOILERS)
O nome do ator alemão Horst Tappert (abaixo) hoje é pouco lembrado, mas sua presença no filme se justifica pelo fato de ele ser bastante popular em aventuras policiais filmadas na Alemanha da época - geralmente adaptações de obras de Edgar Wallace, num subgênero que ficou conhecido como "Krimi". Tappert inclusive virou celebridade alguns anos depois, ao estrelar o seriado de TV alemão "Derrick" no papel-título do detetive Stephan Derrick. Esta série durou 281 episódios, veiculados entre 1974 e 1998!
Tempos atrás, li uma resenha que fazia uma outra interpretação do fracasso do investigador de ELA MATOU EM ÊXTASE para chegar à responsável pelos crimes: ele na verdade saberia, desde o começo, que a culpada de tudo era a Sra. Johnson, mas simpatizou com o motivo da vingança da viúva e resolveu embaçar a investigação de propósito, para que ela tivesse tempo de matar seus quatro alvos. É uma ideia até interessante, mas não há nada no filme que justifique tal interpretação.
Outra participação curiosa no elenco é a do espanhol Germán Robles, interpretando um policial anônimo que integra a equipe de Tappert. Hoje seu nome também anda esquecido, mas entre os anos 50 e 60 Robles foi praticamente um "Christopher Lee espanhol", por fazer papel de vampiro em produções mexicanas de horror. O mais famoso foi como o Conde Karol no clássico "El Vampiro" (1957) e sua continuação "El Ataúd del Vampiro" (1958), ambos dirigidos por Fernando Méndez, mas ele também interpretou o Conde Nostradamus (?!?) em quatro filmes produzidos entre 1960 e 1962, e um vampiro anônimo em "El Castillo de los Monstruos" (1958), de Julián Soler.
Mas esqueça esses atores, pois eles não têm vez: ELA MATOU EM ÊXTASE é um veículo todinho de Soledad Miranda, feito para transformá-la em estrela. Ela aparece usando dezenas de figurinos diferentes, um mais glamouroso do que o outro, além de três ou quatro perucas. Também está praticamente o tempo todo em cena, e a narrativa gira ao seu redor.
Nos créditos, a atriz usa o tradicional pseudônimo "Susann Korda", tirado dos sobrenomes da autora de "O Vale das Bonecas", Jacqueline Susann, e do produtor de "O Ladrão de Bagdá", Alexander Korda. Depois da Condessa Nadine Carody de "Vampyros Lesbos", que já a apresentava como uma espécie de entidade acima dos humanos "normais", aqui Soledad aparece representando a perfeita encarnação da dobradinha "sexo e morte", tão comum na longa filmografia de Jess Franco.
Sua Sra. Johnson seduz e mata as quatro vítimas como se fosse um vampiro, e, não por acaso, em vários momentos do filme ela aparece usando uma capa de cor púrpura à la Drácula - às vezes veste APENAS esta capa! O filme não mede esforços para representar o sex-appeal de Soledad: depois que a primeira vítima é assassinada, as outras três começam a desconfiar que estão na mira de um assassino, mas simplesmente não conseguem resistir aos encantos da vingadora quando ela finalmente se apresenta.
Isso fica bem representado na cena envolvendo o personagem de Paul Muller (sequência abaixo), que é o terceiro a morrer. Ele começa a ser "stalkeado" pela viúva assassina durante dias, em igrejas, bares, escadarias... A moça aparece até no reflexo de espelhos, como se fosse a própria Morte! Aí, mesmo tendo certeza de que a garota é a culpada pelos crimes, e que eventualmente ele também acabará sendo assassinado, o médico se rende e se entrega a um último momento de prazer com o próprio carrasco! Afinal, se a morte é inevitável, que pelo menos seja nos braços de Soledad Miranda de lingerie!
Como vários trabalhos de Franco do período 1960-1970, há um charme modernoso que permeia o filme inteiro, dos cenários e figurinos esquisitos (tipo o exterior da mansão Xanadú, reaproveitado depois pelo diretor em "La Comtesse Perverse"; o laboratório do cientista, ou as roupas utilizadas por Soledad, que parecem saídas das páginas de uma revista em quadrinhos), à belíssima fotografia cheia de cores fortes de Manuel Merino.
Por isso, é obrigatório fugir do DVD brasileiro, lançado pela Continental com a imagem em tela cheia, e do importado da Synapse Films, que tem as cores lavadas e apagadas. A melhor versão do filme atualmente no mercado é a da Image Entetainment, como você pode ver pelas fotos dessa resenha.
ELA MATOU EM ÊXTASE não é um filme de diálogos, nem tem uma história surpreendente e cheia de reviravoltas; são as imagens que conduzem a trama. E o resultado é tão elegante quanto o anterior "Vampyros Lesbos". Inclusive aqui também foi usada uma esquisitíssima trilha sonora lisérgica da dupla Manfred Hübler e Siegfried Schwab, com intervenções do maestro italiano Bruno Nicolai.
Apesar de ser uma história sobre assassinatos violentos, tudo no filme é de uma beleza impecável. Repare, por exemplo, na cena em que a viúva vingativa seduz a Dra. Crawford (sequência abaixo): o primeiro beijo entre as moças fica escondido por trás de um copo de vinho, que Soledad estrategicamente coloca bem na frente da câmera, em primeiro plano; depois, há um longo e sensual momento em que uma atriz despe a outra, lentamente, à meia-luz; finalmente o prazer é interrompido pela morte súbita da médica, que é sufocada com o uso de uma almofada plástica - permitindo que, num momento que lembra muito o cinema de Dario Argento (à época, ainda um novato), a assassina possa assistir o desespero da sua vítima através do plástico transparente!
ELA MATOU EM ÊXTASE é aquele tipo de filme simplório, mas com um charme todo especial, cujo fascínio fica até difícil de explicar. Mas uma coisa é inegável: foi dirigido por um Jess Franco em êxtase, com sua musa Soledad Miranda em êxtase, e qualquer fã de ambos ficará igualmente extasiado ao (re)descobrir essa pequena pérola!
Soledad, por sinal, também morreu em êxtase: no dia anterior à sua morte, Franco foi até o apartamento da atriz, em Lisboa, com uma ótima notícia: Brauner, o produtor alemão que vinha bancando seus últimos filmes, queria assinar um contrato de exclusividade com ela por dois anos, e que lhe garantiria pelo menos quatro papeis principais em filmes de maior orçamento - o que poderia transformá-la numa grande estrela, pelo menos na Europa.
Diz a lenda que Soledad estava indo justamente assinar esse contrato com Jess e Brauner quando sofreu o acidente fatal na rodovia entre Estoril e Lisboa, no dia 18 de agosto de 1970. ELA MATOU EM ÊXTASE foi lançado nos cinemas alemães mais de um ano depois, em dezembro de 1971.
"Ela deixou para trás um incrível legado", disse o diretor, sobre sua musa, no livro "Obsession: The Films of Jess Franco". E continua: "Todas as mulheres que atuaram nos meus filmes depois dela foram profundamente afetadas por este legado. Lina Romay, por exemplo, teve momentos em que parecia completamente possuída por Soledad, até se tornar Soledad Miranda! Meus atores, minha equipe e eu mesmo, todos temos sentimentos profundos por ela, e ela ainda existe para nós".
Felizmente, como escreveu Tim Lucas no mesmo livro, o tempo de Soledad Miranda entre nós pode ter sido bem curto, mas felizmente havia câmeras registrando!
Trailer de ELA MATOU EM ÊXTASE
*********************************************************** Sie Tötete in Ekstase (1970, Alemanha/Espanha) Direção: Jess Franco (aka Frank Hollman) Elenco: Soledad Miranda, Ewa Strömberg, Howard Vernon, Paul Muller, Fred Williams, Horst Tappert Germano Robles e Jess Franco.
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