Filmes de crimes na "bela época" do cinema brasileiro
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Filmes de crimes na "bela época" do cinema brasileiro


A relação das histórias sobre crimes com as de horror é bastante intensa e frutífera, mas tem limites: histórias sobre crimes e histórias de horror não são a mesma coisa. Porém, há momentos em que o crime se torna suficientemente violento e inexplicável para causar ao espectador uma sensação em muito semelhante à que se dá nas histórias de horror sobrenatural. Ao observar-se a história do cinema de horror/exploração como um todo, e também de suas manifestações particulares no cinema brasileiro, pode-se dizer que suas bases se encontram em um gênero (ou “filão”) do primeiro cinema muito popular no começo do século XX, que foi justamente o dos filmes sobre crimes reais tidos como surpreendentes, sensacionais e apavorantes.

Como descreve Flávia Cesarino Costa, o cinema do mundo inteiro, em seus primeiros anos, oscilava entre dois pólos: o do espetáculo de atrações e o da narração. Durante o processo que levou os planos atrativos e independentes dos primeiros filmes a se articularem num espaço-tempo narrativo homogêneo, era preciso que os cineastas se valessem de recursos externos às imagens projetadas para tornar os enredos dos filmes compreensíveis. Entre esses “recursos externos” estavam a música, os apresentadores, a sonoplastia, os folhetos, entre muitos outros artifícios – mas, sobretudo, recorria-se à própria memória dos espectadores, que supunham o conteúdo dos filmes através dos títulos e das alusões a fatos correntes ou eventos conhecidos.

Nesse contexto, esses filmes sobre crimes estavam inseridos em um gênero maior chamado de “cinema de atualidades”, que exibia nas telas os principais temas do noticiário, nem sempre com imagens factuais: muitas vezes, na falta das imagens originais, essas fitas recorriam a encenações dos acontecimentos, auxiliadas pelo uso de maquetes ou de animações entremeadas por cenas documentais, e contanto com o conhecimento prévio da audiência sobre os assuntos tratados.

Segundo Jean-Claude Bernardet, os “criminais” estavam entre as atualidades que mais despertavam interesse no começo do século XX, no Brasil, e eram um dos três gêneros que concentravam a maior audiência no período (os outros dois eram os filmes de revista de ano e os cantantes).

No começo do século XX, as imagens e histórias de horror desenvolvidas ao logo do século XIX já haviam sido absorvidas pela cultura de massas e pelos espetáculos urbanos. Então, desde os movimentos de vanguarda nas artes, até a literatura popular, tudo podia se transformar em veículo para o horror, que começava a se desdobrar em subgêneros e estilos específicos, distanciando-se, cada vez mais, em alguns casos, de suas matrizes góticas originais.

O relativo distanciamento do horror de suas origens góticas não era gratuito. No começo do século XX, o espaço urbano passava por mudanças profundas nos países industrializados, com a padronização dos espaços privados e a massificação dos padrões culturais das populações ali residentes, que teria seu reflexo evidente no imaginário social e nas artes. O horror, elevado à escala industrial, não estaria imune a tal fenômeno. O século XX veria, por uma série de razões, uma massificação do horror, incorporando novos conceitos além do “sobrenatural”. A realidade – após várias guerras, eventos de destruição em massa e manifestações de barbárie social – passaria a incluir a violência inesperada, o estranhamento do outro, a pressão crescente pelo consumismo e pelas novas relações de produção, transformando a vida diária num potencial pesadelo.

Segundo a pesquisadora Judith Hallberstan, uma diferença crucial entre o horror do século XIX e o horror que se desenvolveu ao longo do século XX, é que o primeiro funcionava, retoricamente, como uma metáfora da ambígua subjetividade moderna, desequilibrando os “lados de dentro e de fora” do ser humano, seus aspectos masculinos e femininos, as dicotomias entre o corpo e o espírito, o nativo e o forasteiro, o burguês e o aristocrático, etc, fazendo uso de excessos “ornamentais” e de uma variedade de significados que o transformaram em uma fonte inesgotável de novas interpretações. Já o que se verificou ao longo do século XX pode ser identificado como uma espécie de “frenesi do visível”, não se tratando mais de um recurso retórico da modernidade, mas de uma experiência cada vez mais sensorial e também pautada na nova subjetividade da vida moderna urbana.

Como observa Ben Singer, de fato, "a modernidade também tem que ser entendida como um registro de experiência subjetiva fundamentalmente distinto, caracterizado pelos choques físicos e perceptivos do ambiente urbano moderno. (...) A modernidade implicou um mundo fenomenal – especificamente urbano – que era marcadamente mais rápido, caótico, fragmentado e desorientador do que as fases anteriores da cultura humana. Em meio à turbulência sem precedentes (...) o indivíduo defrontou-se com uma nova intensidade de estimulação sensorial."

Em seu artigo Modernidade, Hiperestímulo e o Início do Sensacionalismo Popular, Singer descreve como representativos desse tipo de sensibilidade uma série de novos produtos culturais que surgiam nas grandes cidades entre o final do século XIX e o começo do XX: o violento teatro do Grand Guignol; os vaudevilles, nos quais artistas e malabaristas arriscavam-se nas mais bizarras armadilhas; os parques de diversões repletos de engenhocas perigosas; as reportagens jornalísticas dedicadas à descrição minuciosa de grandes desastres, assassinatos e acidentes – que se multiplicavam num mundo cada vez mais imprevisível e repleto de novidades comportamentais e tecnológicas.

Como exemplo, ele reproduz um texto publicado em 1894 no New York Daily Adviser, que demonstra o grau ao qual podia chegar o sensacionalismo grotesco da imprensa no final do século XIX – que em nada fica a dever aos mais horrendos shockumentaries contemporâneos:

Isaac Bartle ... foi morto instantaneamente na estação de rua do mercado da ferrovia Pensilvânia nesta manhã. Seu corpo foi tão terrivelmente mutilado que os restos mortais tiveram que ser recolhidos com uma pá e levados embora em uma cesta... Ele foi reduzido a uma massa irreconhecível debaixo das rodas de uma locomotiva de carga pesada ... que o golpeou por trás e o arrastou diversos metros... Praticamente cada osso de seu corpo foi quebrado, a carne feita em pedaços distribuídos ao longo do trilho...

Singer também lembra que as imagens produzidas por cartunistas para ilustrar os horrendos fatos descritos costumavam trazer três elementos que podem relacionar esse “clima” da virada do século com as metamorfoses sofridas pelo gênero horror.

O primeiro elemento apontado por Singer é a presença de “personagens” que assistem às mortes, horrorizados (literalmente, com o cabelo em pé), dando mais emoção à cena descrita. O segundo é o fato de a representação dos acidentes não estar preocupada com suas causas, e sim com aleatoriedade, quase sobrenatural, dos fatos. O terceiro e mais relevante é o fato de as engenhocas assassinas (trens, carros, máquinas usadas na indústria, eletrodomésticos incipientes etc) serem apresentadas, freqüentemente, com “motoristas” esqueléticos e sádicos, numa evidente referência às representações medievais da morte.

Como descreve o autor, entre o final do século XIX e o começo do XX, havia, da parte da imprensa, da literatura popular e dos espetáculos mais populares, uma tematização distópica e constante de uma esfera pública radicalmente alterada, definida pelo acaso, pelo perigo e por impressões chocantes, mais do que por qualquer concepção tradicional de segurança, continuidade e destino auto-controlado. Assim, a morte não natural, que sempre causara tanto medo à humanidade, e que trouxera consigo, até então, uma série de representações horroríficas, ganhava agora um caráter mais violento, repentino, aleatório e publicamente humilhante, que parecia ter ir muito além da compreensão racional.

E, possivelmente não por acaso, o primeiro exemplar de um filme “criminal” brasileiro foi também o primeiro grande sucesso de bilheteria do cinema nacional: OS ESTRANGULADORES DO RIO (1908), produzido no Rio de Janeiro pela empresa Photo-Cinematografica Brasileira, de Giuseppe Labanca, e filmado por Antônio Leal (1876-1946), a partir do texto A Quadrilha de Morte (1907), dos jornalistas Rafael Ribeiro e Figueiredo Pimentel.

A fita, filmada em grande metragem para os padrões da época (cerca de 40 minutos de projeção), refletia a confiança de Labanca, então um importante produtor, nas condições de retorno do negócio de cinema na cidade, e era incentivado pelo sucesso de público de outro filme sobre o tema (este apenas documental), lançado por outra empresa importante, a de Paschoal Segretto: ROCCA, CARLETTO E PEGATTO NA CASA DE DETENÇÃO (1906), com imagens captadas dos acusados pelo crime no presídio.

O duplo assassinato que deu origem a OS ESTRANGULADORES fôra cometido no começo de 1906 por Jerônimo Pegatto, Eugenio Rocca, José Epitácio Rodrigues Fernandes e Justino Carlo, que foram acusados e condenados por estrangular e matar os irmãos Paulino e Carluccio Fuocco, sobrinhos e empregados de um joalheiro da Rua da Carioca, Jacob Fuocco. O assunto, largamente explorado por jornais, folhetos e peças teatrais, gerou grande comoção popular, também porque os investigadores tentaram utilizar um método então em voga na Europa para descobrir os assassinos: a fotografia de retina das vítimas, que poderia revelar a última coisa vista antes da morte.

Apesar da censura da policia (que só aumentou a curiosidade do público), o filme com a história reconstituída iniciou sua carreira triunfal no cinema de Labanca, o Palace da Rua do Ouvidor, nos primeiros dias de agosto de 1908. Calcula-se que tenha sido exibido mais de 800 vezes, constituindo um sucesso sem precedentes do cinema brasileiro.

Como descreve Roberto Moura, a fita estava organizada em 17 intertítulos (a única informação precisa que restou do filme original), entre os quais o quinto e o nono se chamavam: Primeiro estrangulamento e Segundo estrangulamento, estando os outros divididos cronologicamente entre a preparação do crime e captura dos criminosos.

Pouco se sabe sobre o filme além desses 17 intertítulos, mas, a partir deles, é possível aventar-se algumas hipóteses. Moura chama a atenção para o fato de que o filme sugere um primeiro domínio da narrativa cinematográfica, fortemente apoiada no esquema emprestado da reportagem jornalística, linear e com chave de impacto. Não por acaso, um dos roteiristas, o jornalista Figueiredo Pimentel, declararia na época que “ver-se a fita é assistir ao desenrolar desse crime nefando que tanto emocionou o Brasil. A reprodução emociona e revolta, tão bem feita é”.

Mas o que interessa em particular sobre Os Estranguladores neste momento é o fato de que, em pelo menos dois dos 17 quadros, parece haver referência clara à reconstituição das mortes. Ainda que se saiba pouco sobre o filme, os trechos intitulados Primeiro Estrangulamento e Segundo Estrangulamento tornam bastante provável a hipótese de que havia interesse dos realizadores em exibir de maneira explícita os fatos chocantes. E, assim, é aceitável imaginar que grande parte do público que lotou as salas de cinema tivesse a expectativa de ver uma reconstituição fiel dos assassinatos, e de sofrer com o suspense da sua elaboração.

Não se tratava, certamente, de um filme de horror (estava-se muito mais próximo de um gênero policial), mas é notório que o primeiro grande sucesso de bilheteria do cinema brasileiro envolvia a exibição sensacionalista de um crime de morte tido como extremamente cruel. Jean-Claude Bernardet, por exemplo, descreve uma reportagem publicada por uma revista carioca em 1906, pouco depois dos assassinatos, que pode confirmar a possibilidade desse tipo de representação e documentação do crime ter sido feita no cinema:

"Basta citar o número de outubro de 1906 da elegantíssima revista Kosmos que, sob o título, provavelmente nada ingênuo, de 'Um crime empolgante', publica fotos macabras dos ‘estrangulados do Rio’: Paulino Fuoco com a corda no pescoço no quarto em que foi estrangulado; depois no necrotério com Carlo Fuoco, ambos com o rosto inchado, a indicar conseqüências do estrangulamento ou mesmo um início de putrefação. E esse ‘empolgante’ não pode deixar de nos alertar sobre o tipo de relações mantidas pelos cariocas com a criminalidade no Rio de Janeiro no fim do século XIX e inícios do XX, e com sua representação jornalística, teatral e cinematográfica, relações das quais o fascínio muito provavelmente não estava excluído.

Provavelmente encorajados pelo do sucesso desse filme e de todo o circo midiático montado em torno dos crimes supostamente espetaculares que se repetiam nas maiores cidades, Labanca e outros produtores de cinema resolveram investir no filão de aproveitar histórias calcadas nos crimes mais espetaculosos, assim como em aumentar a metragem de suas fitas, o que possibilitava um maior detalhamento dos fatos descritos.

Como descreve o historiador Paulo Emílio Salles Gomes, a filmografia de Antônio Leal em particular, nesses anos, contém títulos que resumem a crônica policial do seu tempo. Entre os filmes realizados pelo diretor, Salles Gomes cita NOIVADO DE SANGUE ou TRAGÉDIA PAULISTA (1909), sobre uma jovem professora paulista que teria esfaqueado seu noivo.

Mas o crime que mais agitaria a crônica policial da primeira década do século XX no Brasil e, conseqüentemente, o “filão” das atualidades reconstituídas no cinema mudo, seria o cometido em 1908 pelo guarda-livros Miguel Traad, que estrangulou e esquartejou o comerciante de calçados paulista Elias Farhat (seu patrão e suposto rival amoroso), e tentou carregar o cadáver dentro de uma mala num navio no Porto de Santos.

Esse crime, até hoje um dos mais famosos do país, inspiraria uma peça teatral, um livro, muitas reportagens jornalísticas e quatro filmes. Naquele mesmo ano, a Empresa Cinematográfica Paulista exibiria um filme com o julgamento do habeas corpus impetrado pela viúva de Farhat, D. Carolina, inicialmente apontada como cúmplice (e depois inocentada). Então, os irmãos Ferrez, importantes produtores no Rio de Janeiro, filmaram uma produção modesta chamada A MALA SINISTRA (1908).

A dupla Leal/Labanca não perderia tempo, realizando outra fita com o mesmo título e, com isso, abrindo uma concorrência direta. Para completar a seqüência de filmes baseados no crime de Miguel Traad, Francisco Serrador, imigrante italiano recém-chegado a São Paulo e líder de uma trupe que realizava espetáculos teatrais, produziria e dirigiria sua própria versão dos fatos, chamada de O CRIME DA MALA (1908). A produção foi acompanhada com interesse pela imprensa e pela polícia, mas, em sua estréia para convidados, foi considerada ridícula e mal feita, não chegando a ser exibida comercialmente nos cinemas.

Como nenhum desses filmes sobreviveu à má conservação, conta-se com artigos jornalísticos e muita imaginação para supor o seu conteúdo. No entanto, ainda que pouco se saiba sobre as imagens efetivamente produzidas, é inegável que o próprio crime reconstituído nesses filmes tinha elementos que apontavam claramente para o horror físico (no caso do esquartejamento e da sua posterior descoberta) e para o horror psicológico (a motivação do crime era, no mínimo, misteriosa: a obsessão do assassino pela mulher do patrão).

Como observa José Inácio de Melo e Souza, esse crime trazia alguns fatores que podem ter determinado um interesse maior do público e dos cineastas: premeditação, perfídia, o fato de dar-se entre imigrantes, a presença de um subalterno amando a patroa e matando o patrão, a decapitação, o esquartejamento, a barbárie e o horror. Juntos, esses elementos fazem desses filmes sobre o crime da mala quase um “elo perdido” entre os antecedentes do cinema de horror nacional.

Depois de OS ESTRANGULADORES e de O CRIME DA MALA, foram realizados cerca de uma dezena de filmes de crime no Brasil até o começo da década de 1920.

Mas, em 1928, outro crime com características muito semelhantes ao de Miguel Traad daria origem a um novo surto de filmes de crime: os filmes O CRIME DA MALA (Francisco Madrigano, 1928) e outro com o mesmo título e ano, de Antônio Tibiriçá, foram baseados no assassinato cometido em 07 de outubro de 1928 pelo imigrante italiano Giuseppe Pistone, que estrangulou e esquartejou sua esposa grávida, Maria Mercedes Féa.

Da mesma forma que nos filmes anteriores, pouco se sabe sobre as reconstituições cinematográficas do crime, mas a riqueza de detalhes oferecida pelos textos e fotografias dos jornais da época sugere que os filmes de Madrigano e Tibiriçá podem ter tido a preocupação de exibir o que se lia nos noticiários: o esquartejamento da mulher, a acomodação de partes do seu corpo na caixa, o aborto post-morten, o líquido escuro que saía do caixote, o cheiro insuportável, a descoberta sinistra no navio etc. Mas, como no caso dos filmes anteriores, tratam-se de hipóteses sobre filmes perdidos.

Tanto no Brasil quanto no resto do mundo, os filmes sensacionalistas de atualidades seriam substituídos, aos poucos, pelos filmes de ficção e pelos cinejornais – ambos bem mais contidos na exibição de cenas chocantes. Assim, o tipo de representação que se supõe nesses filmes ficaria restrito ao cinema de exploração, cuja circulação se daria à margem do circuito principal dos cinemas, e praticamente não chegava ao Brasil. Porém, o interesse pela criminalidade e pela violência nunca desapareceria do cinema brasileiro, e, nos anos 1970, os filmes eróticos populares retomariam algumas características desses filmes antigos, reconstituindo crimes e acidentes reais em fitas que carregavam nas tintas do sangue e da violência.



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