O ÚLTIMO GUERREIRO (1975)
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O ÚLTIMO GUERREIRO (1975)



Se hoje os heróis de infância da garotada são Harry Potter, Percy Jackson e outros bunda-moles, eu tive a sorte de crescer ao lado de pais cinéfilos (e sem-noção) que me deixavam ver filmes como "Stallone Cobra" e "Comando para Matar" já aos 10 anos de idade!

Assim, meus heróis de infância eram gente como Snake Plissken, Mad Max, Braddock e, entre os menos conhecidos, Carson, o inexpressivo mercenário careca interpretado por Yul Brynner em O ÚLTIMO GUERREIRO, objeto de nossa análise de hoje.

Nunca entendi direito o porquê do meu fascínio por Carson, mas, ainda criança, achava o personagem mais interessante do que o próprio filme.


Revendo agora, depois de "velho", a obra escrita e dirigida por Robert Clouse, constatei que O ÚLTIMO GUERREIRO na verdade é ótimo, e o personagem de Yul Brynner continua tão legal quanto me lembro dos meus tempos de moleque.

O filme é de 1975. Clouse gozava de certa fama, à época, por ter dirigido algumas produções de artes marciais numa parceria Oriente-Ocidente, incluindo o sucesso "Operação Dragão" (1973), com Bruce Lee (depois ele também seria chamado para "remendar" o último filme de Lee, "O Jogo da Morte", quando o astro morreu durante as filmagens).

O ÚLTIMO GUERREIRO, entretanto, não tem nada a ver com artes marciais, e é um dos antecessores daquele "boom" de aventuras pós-apocalípticas que tomaria o cinema nos anos 80, depois da febre "Mad Max 2".


Com vaga inspiração em "O Último Homem Sobre a Terra" (1971), de Boris Sagal, o roteiro de Clouse se passa no cabalístico ano de 2012, trinta anos depois que uma misteriosa praga devastou o planeta, matando pessoas, animais e toda a vegetação.

Na cidade de Nova York (sempre ela!), agora transformada em terra de ninguém, os sobreviventes vivem agrupados em colônias, trancafiados atrás de muros e grades. Afinal, basta pôr o pé na rua para ser brutalmente atacado por bárbaros, que matam a pauladas e pedradas para roubar roupas e sapatos - e, não raramente, praticar canibalismo.

Há duas facções principais na extinta metrópole. De um lado, um intelectual conhecido como O Barão (Max von Sydow, emprestando bastante respeito à produção), que prega uma sociedade comunista e pacifista, onde os poucos víveres são distribuídos em porções iguais e todos trabalham.


Do outro lado, o vilão Carrot (William Smith, malvado como sempre), que por sua vez reúne os maiores degenerados num antigo presídio, de onde volta-e-meia saem para caçar e matar os desavisados que encontram pelas ruas.

Na comunidade do Barão, um botânico chamado Cal (Richard Kelton) conseguiu operar um milagre, reproduzindo sementes férteis de legumes.

Essas sementes podem representar o retorno da vida vegetal ao planeta, e o Barão resolve que são importantes demais para germinar ali: é preciso levá-las a um lugar afastado, onde possam ser espalhadas na natureza e dar início ao marco zero de um novo mundo.


Mas como tirar as sementes da fortaleza nova-iorquina se basta pôr o pé do lado de fora para ser morto pelos bárbaros que vivem nas ruas, ou ainda pelos bandidos liderados por Carrot?

A resposta está em Carson, o tal mercenário que aparece silenciosamente vindo de lugar nenhum, e, sem muitas palavras, resolve ajudar o Barão e seus amigos - incluindo a filha do líder (Joanna Miles), que está grávida.

É claro que um confronto mortal com Carrot e seus homens será inevitável.


O ÚLTIMO GUERREIRO não esconde o fato de ser uma produção barata, e o diretor Clouse usa de bastante criatividade para contornar o orçamento baixo.

No início, por exemplo, ele utiliza na montagem fotografias de pontos turísticos de Nova York, completamente desertos, com um som de vento por cima, como se estivesse exibindo cenas de desolação ao invés de fotos estáticas - uma solução muito mais barata do que fechar Nova York para filmar, como fizeram recentemente com "Eu Sou a Lenda".

A despeito desses improvisos, a direção de arte do filme é fantástica, com um excesso de detalhes que salta aos olhos - como as teias de aranha por toda parte numa velha padaria, os enfeites de Natal semi-destruídos numa estação de metrô e o vagão de trem repleto de esqueletos de vítimas do holocausto.


Embora O ÚLTIMO GUERREIRO tenha bastante ação, com Carson enfrentando inúmeras vezes os bárbaros das ruas e os asseclas de Carrot (além do próprio no final, é claro), há uma fortíssima mensagem crítica que faz do filme algo mais do que uma simples aventura descerebrada.

Por exemplo, a comunidade "pacífica" do Barão é ironicamente a mais problemática: enquanto no presídio comandado por Carrot a vida é sempre uma farra, na fortaleza dos "bonzinhos" acontecem brigas de hora em hora por causa da distribuição da comida, dos furtos, da inveja e das fofocas.

Numa cena, um inocente acusado erroneamente é morto sem direito de defesa, demonstrando a fragilidade do senso de "justiça" daquela nova sociedade.


O destino sombrio da comunidade do Barão (e do seu líder) na conclusão só reforça a dificuldade que o ser humano tem de viver em sociedade - mesmo quando está tentando reconstruí-la.

Nesse ponto, o filme é bem deprê e muito cruel: não poupa o espectador de diversas matanças de inocentes, inclusive de um bebê!

Porém o melhor de O ÚLTIMO GUERREIRO é a riqueza de seus personagens, que fogem daquele estereótipo sem muita profundidade dos filmes do gênero.


É o caso do personagem principal, Carson. Bem distante da noção tradicional de "herói" (e por isso escrevo o termo entre aspas), Carson não vai ajudar a comunidade do Barão por razões humanitárias ou porque é bonzinho e justo, mas somente porque o líder lhe prometeu "um estoque ilimitado de charutos"!!!

O triste desse detalhe é que, como todos sabem, o astro Brynner morreu de câncer provocado pelo hábito de fumar, e inclusive gravou um depoimento, exibido na TV após a sua morte, incentivando os fumantes a largarem o cigarro.

Você pode ver esse triste vídeo (que mostra o ator fisicamente debilitado por causa da doença) no link abaixo:

Yul Brynner recomenda: "Não fumem!"



O ÚLTIMO GUERREIRO é um dos últimos papéis do careca no cinema, e nem parece que ele estava com 55 anos na época das filmagens: sarado, musculoso e ágil, sempre com um olhar de pedra e sorrisinho cínico no rosto, Brynner é a própria definição do "cool".

Ele se sai muito bem e ainda convence nas cenas de ação e luta. Sem contar que é daqueles "heróis" que não fazem prisioneiros: ao invés de dar sopapos ou apenas desacordar os inimigos, Carson passa a faca neles sem pensar duas vezes, sem dó nem piedade!

E há uma curiosa beleza no seu personagem que transcende os limites do filme. Acho que esse é o charme de Carson no fim das contas, que o torna tão cool e memorável. O "herói" quase não abre a boca durante o filme, e, ao fazê-lo, não se preocupa em falar sobre sua vida pregressa, deixando no ar, até o final, esse mistério.


Afinal, quem é Carson? Tudo o que vemos e sabemos sobre ele é que o sujeito tem o corpo coberto de cicatrizes, nunca sorri, fala pouco e usa como única arma um punhal, que leva atado à parte de trás de seu cinto.

A habilidade do sujeito no uso da faca e dos punhos levanta a possibilidade de que Carson seja um ex-soldado (ou até um ex-presidiário). E por quantas lutas terá passado antes, para colecionar as cicatrizes pelo corpo?

Salta aos olhos até a maneira meticulosa com que o personagem coloca seu punhal de pé, apoiado pelo cabo, quando não está usando a arma.


Trata-se de um personagem riquíssimo e interessantíssimo justamente pelo que o filme NÃO conta, e eu odeio esses roteiros onde os caras explicam tintim por tintim o passado, presente e futuro dos protagonistas. Ao deixar a maior parte para a imaginação do espectador, O ÚLTIMO GUERREIRO transforma Carson num personagem realmente melhor do que o próprio filme!

O detalhismo se estende ao vilão de William Smith - aliás, que diabos de nome de vilão é esse, "Carrot" (em bom português, "cenoura")??? Implacável e cruel, o bandidão tem uma enorme cicatriz no pescoço cuja origem também nunca é explicada, fazendo com que o espectador imagine várias teorias para o passado do sujeito.

(E o duelo final entre Carson e Carrot é ótimo, com direito a uma inesperada e terrível mutilação do herói, algo pouco usual no cinema de ação norte-americano!)


Finalmente, chegamos ao Barão de Max von Sydow, um sujeito que, numa análise simplista, poderia ser descrito como um líder humanitário que tenta reerguer uma sociedade justa e pacífica. Só que, numa análise mais apurada, o Barão se revela um personagem de duas-caras: autoritário, quase um ditador, cujas sentenças e regras passam longe do conceito de "justiça", e mais preocupado em consertar relógios antigos do que com o futuro da sua comunidade.

Não se pode dizer que Robert Clouse era um mestre do cinema de ação (eu acho "Operação Dragão" e "O Jogo da Morte", que ele dirigiu, os dois filmes mais fracos do Bruce Lee).

Mas o sujeito tem uma filmografia bem interessante que nunca recebeu o devido valor - valem uma olhada, por exemplo, "O Grande Lutador", com Jackie Chan, "Force Five" e "Gymkata - O Jogo da Morte". Ele morreu meio esquecido em 1997. À época, estava sem filmar já há cinco anos.


Uma curiosidade mórbida dos bastidores envolve Richard Kelton, que interpreta o botânico Cal. Esse candidato a astro tinha um futuro promissor, mas morreu três anos depois de O ÚLTIMO GUERREIRO, aos 35 anos, num acidente estúpido: durante as filmagens do episódio de uma série de TV, Kelton trancou-se em seu trailer para decorar as falas e descansar, sem saber que havia um vazamento de gás no interior do veículo. O ator desmaiou, foi envenenado pelo gás e encontrado muitas horas depois, já morto.

Muitas aventuras pós-apocalípticas foram feitas depois de O ÚLTIMO GUERREIRO, e diversas delas mostraram uma Nova York devastada - de produções baratas como "2019 - After the Fall of New York", de Sergio Martino, à superprodução "Eu Sou a Lenda".


Mesmo assim, esse filme de Clouse tem um charme todo especial que eu nem consigo explicar direito: vem do elenco interessante (Brynner, Von Sydow e William Smith NO MESMO FILME?), do ótimo personagem principal, do belo uso dos cenários devastados, da crueldade daquele mundo bárbaro...

Enfim, O ÚLTIMO GUERREIRO é um filmaço que merece ser redescoberto - antes tarde do que nunca.

Pelo menos antes que façam um remake bilionário, con Vin Diesel ou Jason Statham emprestando suas carecas ao personagem que foi de Yul Brynner.

Carson em ação em O ÚLTIMO GUERREIRO



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O Último Guerreiro (The Ultimate
Warrior, 1975, EUA)

Direção: Robert Clouse
Elenco: Yul Brynner, Max von Sydow, William Smith,
Joanna Miles, Richard Kelton, Stephen McHattie,
Darrell Zwerling e Lane Bradbury.



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