CARTES SUR TABLE (1966)
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CARTES SUR TABLE (1966)



Das ironias do mundo do cinema: no começo dos anos 1960, quando Harry Saltzman e Albert R. Broccoli decidiram adaptar para o cinema as aventuras de James Bond escritas por Ian Fleming, ouviram um "não" de dezenas de estúdios, diretores e atores. Mas foi só o "O Satânico Dr. No" (1962) sair, e revelar-se um grande sucesso de bilheteria, para que todo mundo começasse a correr atrás do atraso, tentando faturar em cima da febre.

Após o sucesso de "007 Contra Goldfinger" (1964), produtores italianos, espanhóis e franceses (principalmente estes) deram início à realização em escala industrial de cópias das aventuras de James Bond, num ciclo que ficou conhecido como "Eurospy". E tome agentes secretos com códigos numéricos: "A 001, Operazione Giamaica" (1965, dir: Ernst R. von Theumer), "Agent 077 - From the Orient with Fury" (1965, dir: Sergio Grieco), "A 008, Operation Sterminio" (1965, dir: Umberto Lenzi), "Agente X 1-7: Operazione Oceano" (1965, dir: Tanio Boccia), "Agente 3S3: Passaporto per l'inferno" (1965, dir: Sergio Sollima), as diversas aventuras francesas do agente OSS 117 (que é ANTERIOR ao "O Satânico Dr. No"), e por aí afora.


E o que Jess Franco tem a ver com o pastel?

Bem, inicialmente ele foi uma vítima da febre, já que um thriller de espionagem que dirigiu em 1962, chamado "La Morte Silba un Blues" e sem nenhuma relação com James Bond, acabou sendo lançado pelos distribuidores franceses com o título "Agent 077: Opération Jamaïque" (veja abaixo).

Até o ator principal deste filme, Conrado San Martín, ganhou um nome artístico americanizado, "Sean Martin", remetendo tanto a Sean Connery quanto a Dean Martin (que, na mesma época, interpretava Matt Helm, outro espião famoso adaptado para o cinema).

Repare na "pequena alteração" nos cartazes e no nome do astro!

Em 1965, que provavelmente foi o ano do pico da produção dos Eurospies, Jess também ganhou uns trocos para reescrever seu roteiro de "La Morte Silba un Blues" como uma aventura de espiões mais popular, que se transformou na aventura ítalo-franco-espanhola "Da 077: Intrigo a Lisbona", dirigida por Tulio Demicheli.

No ano seguinte, foi a vez do próprio Franco aventurar-se pelo ciclo. Numa tacada só, rodou três filmes de espionagem em tom de farsa, que não se levavam muito a sério, e ao mesmo tempo reciclavam e parodiavam clichês das aventuras de James Bond, Matt Helm, Derek Flint e suas imitações. O primeiro, que nos interessa no momento, foi CARTES SUR TABLE (1966), e os demais são "Residencia para Espías" e "Lucky, El Intrepido" (estes lançados em 1967). Nos anos seguintes, ele ainda faria mais algumas produções nessa linha.


Tanto CARTES SUR TABLE ("Cartas na Mesa", em tradução literal) quanto "Residencia para Espías" foram estrelados pelo norte-americano Eddie Constantine (1913-1993), que, na época, era um super-astro na França. Constantine já era um cantor bastante popular quando estreou no cinema, e caiu nas graças do público francês ao estrelar aventuras do detetive Lemmy Caution, um personagem criado pelo escritor inglês Peter Cheyney.

Seu primeiro filme no papel do herói foi "Brotinho Venenoso" ("La Môme Vert de Gris", 1953), e depois Constantine faria mais 12 filmes e dois episódios de série de TV interpretando Lemmy Caution, sendo que dois deles eram "filmes de arte" dirigidos por Jean-Luc Godard ("Alphaville", de 1965, e "Allemagne 90 Neuf Zéro", de 1991).


Em CARTES SUR TABLE, Constantine interpreta o espião Al Pereira, criação do próprio Franco - cujo nome é uma homenagem ao diretor de arte de Hollywood Hal Pereira, que trabalhou em clássicos como "Os Brutos Também Amam", "A Guerra dos Mundos" e diversos filmes de Alfred Hitchcock. Vale lembrar que, no áudio original francês, o sobrenome é pronunciado como "Pehehá" (para facilitar, o nome foi alterado para "Al Peterson" na dublagem em inglês).

A história começa com vários assassinatos de líderes religiosos e políticos ao redor do mundo, sempre cometidos por meio de ataques praticamente suicidas realizados por misteriosos matadores de pele acobreada e usando óculos. Quando um deles é preso pela polícia, não fala coisa com coisa; ao recolocar os óculos, entretanto, torna-se agressivo e tenta fugir, sendo baleado e morto.


É quando a Scotland Yard descobre que o homem havia desaparecido dois anos antes em Alicante, na Espanha. E, assim como outras pessoas que sumiram sem deixar pistas naquela mesma região, tem um fator sanguíneo bastante raro chamado "Rhesus Zero", o equivalente a O positivo e negativo ao mesmo tempo!

(Não precisa ser formado em Medicina para saber que não existe tal coisa, mas os roteiristas precisavam de alguma anomalia científica para justificar a escolha dos candidatos a matador, conforme veremos mais adiante. Saiba, portanto, que é preciso fechar um olho para o fator realismo ao encarar o filme, se é que alguém realmente espera realismo em uma aventura dessas...)


Acreditando que todos esses fatores têm uma relação, a Scotland Yard resolve recrutar o único de seus espiões que tem o tal sangue raro, para investigar o que acontece em Alicante.

O candidato em questão é Al Pereira; só que, sem que ele saiba, seus superiores resolvem mandá-lo para a Espanha numa missão falsa, esperando que ele seja sequestrado, como os demais desaparecidos, enquanto outros agentes secretos mais habilidosos seguem a pista dos vilões! Sacanagem, não?


Sem desconfiar de nada, Pereira pega seus gadgets à la James Bond e parte para a Espanha, onde descobrirá, quase sem querer, que os tais assassinos são pessoas comuns transformadas em autômatos, controlados por sinais de rádio enviados pelos óculos que usam. O responsável por isso é o típico cientista louco de filmes do 007, Sir Percy (Fernando Rey), e somente quem tem o raríssimo fator "Rhesus Zero" pode passar pelo processo de transformação (ah, bom...).

Para complicar um pouquinho a história, Pereira também é recrutado "à força" por uma quadrilha de chineses, liderada por Lee Wee (Vicente Roca), que tem grande interesse no tal sistema de controle cerebral. Como todo bom agente secreto, o herói também se envolverá com todo tipo de femme fatales, incluindo a dançarina Cynthia Lewis (a francesa Sophie Hardy), que pode ser um agente duplo.


Como a maioria dos trabalhos da "fase clássica" de Jess Franco, CARTES SUR TABLE pode ser surpreendente para quem só conhece as tranqueiras que ele fez de 1980 em diante. Afinal, a narrativa é mais "comportada" e o visual é deslumbrante, com belissima fotografia de Antonio Macasoli (dê uma espiada nas imagens abaixo), sem nem sinal do excesso de "zooms" e câmera esquizofrênica que os detratores do diretor apontam como grandes defeitos dos ses trabalhos posteriores.

Também ajuda o fato de o roteiro ter sido escrito em parceria com Jean-Claude Carrière, que já havia assinado o anterior e excelente "Miss Muerte". Ele é mais conhecido como roteirista dos clássicos de Luis Buñuel, tipo "O Fantasma da Liberdade" e "O Discreto Charme da Burguesia". Por isso, muito fã de cinema de arte certamente vai surtar ao descobrir que o homem também trabalhou com o "maldito" Jess Franco!


O roteiro de Franco e Carrière é bastante fiel ao clima de "pulp fiction" das aventuras de espionagem da época, com sucessivas traições, perseguições, tiroteios, mulheres fatais e até bandidos orientais (coisa muito em voga na ficção de gênero da época), mais a bem-vinda inclusão de toques de ficção científica, com os autômatos controlados por ondas de rádio (um detalhe que já havia sido enfocado por ambos no anterior "Miss Muerte").

O melhor é que a dupla também parece não estar levando a coisa tão a sério, ou menos a sério do que as aventuras de James Bond e muitos de seus imitadores. Lá pelas tantas, aparece até um agente mirim (interpretado por Lemmy Constantine, filho do astro), que usa seu carrinho de brinquedo como walkie-talkie!


Numa cena genial, Pereira recebe seus gadgets - coisas como luvas eletrificadas e um charuto que solta gás venenoso - e questiona seus superiores quanto ao fato de aqueles equipamentos oferecerem perigo também a ele mesmo. Afinal, uma das armas é um guarda-chuva que, quando aberto, explode!
- E eu vou ter que andar com isso pela Espanha? - ironiza Pereira.
- Somente em dias de chuva.
- Mas, se chover, eu não posso abri-lo!
- Claro que não, porque aí ele explode!


Outro momento fantástico em que CARTES SUR TABLE investe no humor acontece quando dois grupos distintos de vilões (os chineses e os autômatos de Sir Percy) resolvem armar uma emboscada para Pereira em seu quarto de hotel NA MESMA HORA. Acaba explodindo a maior briga entre os bandidos, com um grupo matando o outro.

Para piorar, quando o herói volta ao quarto, precisa esconder os cadáveres espalhados por toda parte para que eles não atrapalhem a noite de amor que terá com a dançarina Cynthia! Uma cena genial, que você definitivamente não verá num filme de James Bond!


Por falar em Bond, embora Al Pereira tenha sido construído a partir das mesmas bases de Sean Connery em "O Satânico Dr. No" e aventuras seguintes (ele é apresentado usando smoking e jogando num cassino, tem gadgets, pega a mulherada, fuma um cigarro atrás do outro), ao mesmo tempo ele é radicalmente diferente do seu colega 007.

Por exemplo, Pereira não é tão seguro de si e nem se diverte tanto quanto Bond em suas missões; pelo contrário, o herói aqui parece de saco cheio da vida de espião e louco para abandonar tudo. Ele também não toma nenhum "martini batido, mas não mexido", e aparenta estar em tratamento de alcoolismo (em certo momento, até aparece bebendo Coca-Cola!).

Tampouco tem o mesmo glamour em matéria de veículos: ao invés de um Aston Martini para dar rolê e pegar as gatinhas, o espião encara um busão lotado e caindo aos pedaços na sua chegada em Alicante - mas mesmo assim joga charme para cima da Bond Girl, ou "Pereira Girl"! Só esses toques cômicos já valem o filme.


Constantine está muito bem como agente secreto, e vendo o filme hoje dá para entender porque ele era tão popular na Europa da época: o ator tem um quê de Humprey Bogart, intercalando charme cínico, simpatia e bom humor. Numa realidade alternativa, talvez até fizesse um ótimo James Bond francês, e não inglês.

Inclusive o próprio Franco deve ter adorado trabalhar com o ator, já que, em várias entrevistas da época, Jess dizia que seus diretores preferidos eram Godard e John Ford, e Constantine havia recém saído de "Alphaville", que foi dirigido por Godard. Devem ter rolado várias conversas entre diretor e astro nos bastidores.


O único ponto fraco de CARTES SUR TABLE, em comparação com as aventuras de James Bond que homenageia/cita/satiriza, é a falta de um vilão mais expressivo. O ótimo Fernando Rey até impõe algum respeito como Sir Percy, o fabricante de autômatos. E vive num enorme esconderijo cheio de maquinário de alta tecnologia (para a época) e capangas armados, como convém a um adversário do gênero. Infelizmente, o personagem aparece muito pouco e não faz nada de memorável nestas poucas aparições. Assim, quem acaba brilhando em seu lugar é o braço direito de Percy, Lady Cecilia (Françoise Brion), que tenta seduzir o herói duas vezes e entra naquela categoria "capanga sedutora do vilão", elemento tão comum nos filmes de 007.


Há um enigma que persiste até hoje envolvendo CARTES SUR TABLE: embora todas as cópias existentes sejam em preto-e-branco, alguns pesquisadores defendem que Franco rodou as cenas usando filme colorido, mas o laboratório converteu tudo para preto-e-branco na pós-produção a mando dos produtores, que queriam aproveitar que os "filmes noir" estavam na moda graças ao já citado "Alphaville".

Tem dois bons argumentos para embasar essa teoria. Primeiro, o fato de o segundo filme de Jess com Constantine, "Residencia para Espías", filmado logo em seguida, ser colorido. E em segundo lugar, um elemento importante da própria trama: os autômatos de pele acobreada "desbotam" ao morrer e ficam com o rosto pálido, mas obviamente tal mudança de coloração aparece de maneira bem sutil na fotografia em preto-e-branco (em cores se notaria muito mais facilmente).


Embora esta seja a única vez que Eddie Constantine interpretou Al Pereira, Franco continuou escrevendo e dirigindo novas aventuras do personagem nos anos seguintes. De agente secreto ele foi virando detetive particular e até explorador da selva, conforme a necessidade.

No lugar de Constantine, Howard Vernon, Olivier Mathot, o próprio Franco e Antonio Mayans assumiram o papel. O espanhol Mayans foi quem mais vezes encarou Al Pereira (seis ao todo), incluindo os dois últimos filmes dirigidos por Jess Franco, "Al Pereira vs. the Alligator Ladies" (2012) e "Revenge of the Alligator Ladies" (2013).

Na sua fase mais "vale-tudo", na década de 80, Jess fez uma refilmagem "disfarçada" deste filme, chamada "Viaje a Bangkok, Ataúd Incluido" (1985), com a mesma história dos assassinatos políticos cometidos por autômatos controlados à distância (nesta versão, eles inclusive são cegos!). Mas tal reboot não é nem de longe tão divertido quanto o "original".


Além de uma bela contribuição "Franquiana" para o ciclo dos Eurospies, e de um veículo perfeito para o cultuado Eddie Constantine brilhar entre seus fãs franceses (o filme foi muito mal lançado no resto do mundo), CARTES SUR TABLE também é um belíssimo argumento para você esfregar na cara daquele seu amigo cinéfilo chato que vive falando que Jess Franco não entende porra nenhuma de cinema.

Afinal, o filme não apenas é bem produzido, bem filmado, bem interpretado e BEM DIVERTIDO, mas também tem um ator cult que trabalhou com Godard no papel principal e um roteirista que trabalhou com Buñuel - uma combinação pra cinéfilo chato nenhum botar defeito!

PS: Numa cena em que Cynthia se apresenta no palco de uma boate, o pianista da banda de jazz que está se apresentando é o próprio Jess Franco (ele pode ser visto numa das imagens desta resenha).


Trailer de CARTES SUR TABLE



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Cartes sur Table / Attack of the Robots
(1966, Espanha/França)

Direção: Jess Franco
Elenco: Eddie Constantine, Françoise Brion, Sophie
Hardy, Fernando Rey, Alfredo Mayo, Vicente Roca,
Ricardo Palacios, Dina Loy e Mara Lasso.



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