"Crossover" é o nome dado ao encontro de personagens de mídias ou histórias distintas, e, embora os nerds acreditem que seja uma coisa recente (graças a HQs como "Marvel vs. DC" ou filmes tipo "Alien x Predador"), o recurso é antiquíssimo, inclusive no mundo do cinema, que já mostrou insólitos encontros como "Abbott and Costello Meet the Mummy" (1955) e "King Kong vs. Godzilla" (1962). O curioso é que embora o "crossover" se encaixe como uma luva no universo do western, já que os fãs do gênero adorariam ver seus personagens preferidos duelando para saber quem é o mais rápido no gatilho, produções neste sentido demoraram para aparecer.
A partir do começo dos anos 70, Django já não era o pistoleiro mais popular do western spaghetti: desde 1968, ele rivalizava as atenções do público com outro personagem, Sartana, surgido em "Se Encontrar Sartana, Reze Pela Sua Morte", de Gianfranco Parolini. E embora o intérprete "oficial" do personagem seja Gianni Garko nos quatro filmes da série, logo pipocaram vários "Sotto-Sartanas", ou Sartanas genéricos, interpretados por gente como William Berger e George Ardisson.
Era questão de tempo para que algum espertinho resolvesse juntar os dois lucrativos personagens num único filme, e isso aconteceu em 1970. Infelizmente, o "crossover" entre os gatilhos mais rápidos do Oeste não foi comandado por um cineasta apto, tipo os diretores que assinaram as aventuras de origem de ambos (Sergio Corbucci e Parolini). Pelo contrário: o responsável por DJANGO DESAFIA SARTANA foi ninguém menos que Demofilo Fidani!
Se o nome "Demofilo Fidani" não significa nada para você, caro leitor, meus parabéns: você é um cinéfilo de bom gosto, que foge de filmes e diretores ruins como o Diabo da cruz. Apenas permita-me alertá-lo de que você está deixando de se divertir bastante. Apelidado de "Ed Wood do Western Spaghetti", Fidani era um débil mental cuja ruindade ultrapassa até a de nomes conhecidos do universo trash, como Bruno Mattei e Alfonso Brescia (para ficar só nos italianos). Definitivamente, eu não recomendaria uma obra dele para alguém que não cultive uma paixão incondicional por filmes ruins.
DJANGO DESAFIA SARTANA foi o título adotado nos lançamentos em VHS e DVD, e, considerando a trama do filme, não poderia ser mais inadequado: apesar de passar a ideia de que teremos um grande duelo entre os dois famosos personagens, na verdade eles lutam lado a lado contra uma dupla de vilões. Nos cinemas brasileiros, o filme foi batizado como "Django e Sartana - Até o Último Sangue", resumindo o título original italiano ("Quel Maledetto Giorno d'inverno... Django e Sartana all'ultimo Sangue").
Curioso é que, apesar de o título divulgar com tanto entusiasmo o encontro dos dois personagens famosões, nenhum deles é chamado pelo nome até o ato final do filme, quando finalmente descobrimos que Jack Betts interpreta Django e Fabio Testi (em começo de carreira) é Sartana, embora use outro nome durante todo o resto do filme!
O roteiro escrito pelo próprio Fidani em parceria com a esposa Mila Vitelli Valenza não podia ser mais simplório: a pequena cidade de Black City recebe um novo xerife, Jack Ronson (Testi), recém-chegado de Denver City. Os pacíficos moradores esperam que ele acabe com os dois perigosos foras-da-lei que dominam o lugar, Bud Willer (Dino Strano, visto também em "Django não Espera... Mata") e o mexicano Paco Sanchez (Benito Pacifico).
O problema é que Ronson é um xerife de primeira viagem, ainda inexperiente e meio cagão, que não sabe exatamente como lidar com os bandidos e prefere evitar o confronto direto, deixando-se inclusive humilhar por eles numa visita ao saloon. Para a sorte do rapaz, também chega à cidade um misterioso pistoleiro vestido de preto (o norte-americano Jack Betts, que usava o pseudônimo "Hunt Powers"). Ele é o caçador de recompesas Django, mas só se identificará como tal no fim do filme.
Percebendo que Ronson ainda não está preparado para enfrentar os vilões, Django consegue fazer com que um dos bandidos, Willer, desafie o xerife para um duelo; então, o caçador de recompesas dá um sumiço em Ronson e veste suas roupas, enfrentando o bandidão de igual para igual. Adivinha só quem vai sacar primeiro?
Com Willer morto, seu sócio Paco resolve levar o inferno a Black City. Mas ele e seus homens serão enfrentados por um misterioso pistoleiro com o rosto semi-encoberto. Será Django outra vez, passando-se pelo xerife, ou será que Ronson finalmente tomou coragem para combater os criminosos?
Na última cena de DJANGO DESAFIA SARTANA, quando os dois heróis finalmente se apresentam, a última frase do personagem de Testi (e do próprio filme!) é algo como "Aqui vocês me conhecem como Jack Ronson, mas meu verdadeiro nome é Sartana", apenas para justificar o título do filme.
Parece até mudança feita de última hora, apenas para faturar uns trocados com os fãs dos dois personagens, pois àquela altura Sartana era tão popular quando Django - Fidani provavelmente pensou que se um herói já levava público aos cinemas, os dois juntos levariam o dobro!
Outra evidência de que batizar o personagem de Testi como Sartana na cena final pode ter sido uma ideia de última hora é o fato de que o sujeito não tem absolutamente nada a ver com Sartana da forma como é representado no filme (a não ser, claro, que Fidani esteja fazendo um "prequel", contando a história de como Sartana começou sua longa carreira de pistoleiro implacável).
E nem é ignorância do diretor, pois nos anos anteriores ele já havia feito duas aventuras não-oficiais de Sartana: "Sartana - A Sombra da Morte" e "Sou Sartana... Venham em Quatro para Morrer", ambas de 1969 e ambas estreladas por Jeff Cameron. Logo, se DJANGO DESAFIA SARTANA tivesse sido planejado como "crossover" entre os personagens desde o início, por que Fidani não chamou Cameron para repetir o papel?
Embora também não tenha muito em comum com o Django de Corbucci e Franco Nero, o Django de Jack Betts pelo menos está melhor caracterizado; barbeado pela primeira vez, ao contrário das outras encarnações oficiais e não-oficiais do personagem, ele é apresentado como caçador de recompensas (como o Django de Gianni Garko em "10.000 Dólares para Django"). Betts também mantém aquele tom cínico e calado da interpretação de Franco Nero, além de vestir figurino parecido, todo preto (a novidade é uma vistosa cicatriz no rosto).
Em relação aos vilões, não há nada de muito especial: Strano encarna o bandido fanfarrão que adora humilhar e desafiar os outros, e Pacifico o típico bandido mexicano extremamente malvado, também com uma cicatriz enorme que ocupa metade do seu rosto. Nenhum deles é particularmente memorável ou ameaçador, ou tem alguma característica marcante. São bandidos de meia-tigela, perfeitos para uma aventura de meia-tigela como esta.
DJANGO DESAFIA SARTANA foi filmado em 1969 e lançado no ano seguinte, e parece ser uma produção melhorzinha do que outros trabalhos de Fidani no gênero, pelo menos visualmente. Já nos outros departamentos, percebe-se que o orçamento também é minúsculo, ou inexistente. Fidani era um especialista em fazer faroestes baratos rapidamente, e sempre apresentando todo um repertório de erros grosseiros, problemas de ritmo e inépcia geral, que também podem ser encontrados aqui.
Por exemplo: entre 30 e 35 minutos da narrativa correspondem a um gigantesco flashback em que os dois heróis sequer aparecem (!!!), e que apenas mostra como os vilões Willer e Paco ascenderam ao poder e dominaram Black City. Com direito a momentos descartáveis apenas para comprovar a crueldade dos bandidos, como quando eles entram num bar (um cenário mais pobre que o Restaurante da Dona Florinda, do seriado "Chaves") e matam os fregueses e uma dançarina anônimos antes de sair gargalhando!
Vale destacar que Quentin Tarantino também usou um tempão para contar a origem da vilã O-Ren-Ishii em "Kill Bill". Mas é claro que a história dos dois vilões aqui não têm nenhum interesse, e só é tão longa porque Fidani provavelmente precisava enrolar para manter o tempo de duração de um longa-metragem!
Em relação a Django e Sartana, os dois personagens famosos que estão no título, pouca coisa acontece até a meia hora final. Django até mata um montão de bandidos, mas Jack Ronson/Sartana não faz absolutamente NADA até os últimos 10 minutos. Se for para analisar o tempo em cena de cada personagem, o filme bem que poderia ser rebatizado como "Ascenção e Queda de Bud Willer e Paco Sanchez"!
Há algo de interessante na ambientação, uma cidadezinha em pleno inverno (justificando a primeira parte do título italiano, "Aquele Maldito Dia de Inverno..."), castigada por ventos fortes que obrigam os personagens a usarem casacos grossos e cachecóis - o extremo oposto da maioria dos westerns, que se passam em cidades desérticas com o sol a pino e personagens sempre sujos e suados.
Mas Fidani não tem capacidade para fazer nada de muito memorável com a ambientação ou com os personagens, simplesmente pulando de uma cena de tiroteio/briga para a outra. Numa entrevista de anos atrás (o diretor faleceu em 1994), havia uma estapafúrdia justificativa do velho Demofilo para os contrastes da sua obra: "O filme tem um belo início e um belo final. As coisas que eu gostava, dirigi bem. Já as outras...". Que figura!
Claro que quem for ver o filme baseado no título enganoso adotado no Brasil vai quebrar a cara, pois não há desafio algum entre os dois personagens em DJANGO DESAFIA SARTANA (alô, Procon?!?). A não ser que os distribuidores estivessem se referindo a uma rápida troca de socos entre Django e Ronson/Sartana, que acontece quando ambos discordam numa questão e resolvem resolvê-la com sopapos (o que eu não consideraria um "desafio").
O nome de Sartana no título é uma enganação pura e simples, já que quem domina a aventura é Django. Dentro de suas limitações, Jack Betts consegue encarnar um Django bem decente e divertido (ele foi o ator que mais vezes interpretou o personagem, três ao todo). Ao menos o roteiro lhe dá oportunidades de atirar em vários bandidos ao longo do filme, e ele ainda protagoniza várias cenas divertidas, como quando acende um cigarro riscando o fósforo nos dentes de um barman impertinente, ou ao disparar um tiro no meio da moeda que usa para pagar o mesmo sujeito!
Já o pobre Testi parece completamente perdido no filme. A ideia de um xerife iniciante que precisa pegar as manhas da coisa justamente numa cidade dominada por dois perigosos bandidões é boa, mas mal-aproveitada por Fidani. Na maior parte do tempo, Testi só fica zanzando pela cidade e olhando para o outro lado quando encontra os vilões, para não se comprometer.
O máximo de conflito, antes do tiroteio final, é um hilário momento à la "Falcão, O Campeão dos Campeões" (mas 17 anos ANTES), quando Ronson/Sartana desafia Willer para uma queda de braço, com velas acesas nas duas extremidades da mesa (para queimar a mão do perdedor)! Juro que estou até agora tentando encontrar algum propósito nesta cena!
Na época do lançamento, Testi foi identificado por um pseudônimo em inglês (no seu caso, "Stet Carson"). Este aqui é um dos seus primeiros papéis principais (ou quase), mas ele já havia feito grandes filmes, como os clássicos "Três Homens em Conflito" (1966) e "Era Uma Vez no Oeste" (1968), de Sergio Leone, respectivamente como dublê e figurante. Foi Fidani quem deu as primeiras oportunidades para o ator, inclusive sua estreia no cinema foi num filme do diretor, "Gringo, Reze para Morrer", de 1967.
Anos mais tarde, quando Testi ficou famoso e começou a fazer filmes bem melhores usando o próprio nome de batismo ao invés do ridículo "Stet Carson", novas cópias de DJANGO DESAFIA SARTANA tiveram os créditos iniciais mudados para que o nome "Fabio Testi" aparecesse em destaque. Em entrevistas recentes, o ator lembrou entre risadas da sua experiência com Fidani: em diversos filmes, Testi trocava de roupa cinco ou seis vezes para fazer figuração como diferentes bandidos anônimos alvejados pelos heróis!
Recomendado apenas a fãs de trash movie e escolados no cinema de Demofilo Fidani (que assina como "Miles Deem", o mais popular dos seus 12 pseudônimos), DJANGO DESAFIA SARTANA é a típica produção que funciona pelos motivos errados - neste caso, por ser engraçada de tão ruim.
Sem nunca tentar ser mais do que é, a produção barata assume-se como uma mera desculpa para tiroteios e cenas de ação, com dublês que morrem fazendo exagerados malabarismos e revólveres que disparam 16 tiros sem precisar recarregar. Enfim, o típico western descartável, casca-grossa e rápido e rasteiro que meu finado avô, grande fã do gênero, adorava assistir - para ele, vejam só que heresia, os westerns de Leone e Corbucci eram muito enfeitadinhos e complexos!
Mas Fidani faria coisa bem pior (e mais divertida) num novo encontro entre os personagens, "Django e Sartana no Dia da Vingança", que também é uma picaretagem de dar dó! E, provando que era mesmo o "Ed Wood do Western Spaghetti", ele ainda juntou cenas destes dois filmes para fazer um terceiro, "Uma Balada para Django", conforme veremos em futuros capítulos dessa nossa MARATONA VIVA DJANGO!.
PS 1: O elenco conta também com dois atores habituais do cinema Fidaniano: o brasileiro Celso Faria e a bela filha do diretor, Simonetta Vitelli, sempre usando o pseudônimo "Simone Blondell".
PS 2: Django desafiaria mesmo Sartana, desta vez sem propaganda enganosa, em "Django x Sartana - Duelo Mortal", de Pasquale Squitieri, lançado no mesmo ano.
Trailer de DJANGO DESAFIA SARTANA
*********************************************************** Quel Maledetto Giorno d'inverno... Django e Sartana all'ultimo Sangue (1970, Itália) Direção: Demofilo Fidani Elenco: Jack Betts, Fabio Testi, Benito Pacifico, Dino Strano, Luciano Conti, Simonetta Vitelli, Attilio Dottesio e Celso Faria.
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